Descrição de chapéu
Governo Biden China

Crise dos óvnis entre EUA e China traz ecos da Guerra Fria

Disputa na região norte do mundo e paranoia remetem ao choque entre potências do século 20

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

A crise dos balões entre Estados Unidos e China escala dia após dia, trazendo consigo ecos da primeira edição da Guerra Fria entre superpotências, que opôs Washington a Moscou de 1945 a 1991.

Primeiro foram os americanos a localizar e interceptar um suposto balão espião chinês vagando sobre seu território no dia 4, derrubando outros três objetos suspeitos de sexta (10) para cá. Agora, Pequim lembra que seu espaço aéreo foi violado por flutuantes semelhantes mais de dez vezes no ano passado.

Caça F-22 passa pelo balão chinês acusado de espionagem pelos EUA na Carolina do Sul
Caça F-22 passa pelo balão chinês acusado de espionagem pelos EUA na Carolina do Sul - Randall Hill - 4.fev.2023/Reuters

Ambos os lados negam o óbvio: a espionagem de rivais é algo tão antigo quanto a guerra em si, e a crise ganha dramaticidade por abalroar a reaproximação que estava em curso entre Xi Jinping e Joe Biden, por iniciativa do chinês. Os balões caem como uma luva para as alas contrárias a Pequim em Washington.

O campo de batalha dessa modalidade específica de ação espiã remete à Guerra Fria, retomada em versão 2.0 em 2017. Trata-se da região norte do planeta, próxima ao Ártico, a linha de frente da defesa dos EUA por ser o caminho mais curto para bombardeiros ou mísseis intercontinentais com ogivas nucleares.

De 1957 a 1993, uma linha de radares de alerta antecipado corria do Alasca até a Islândia, sendo substituída por um conjunto mais eficaz concentrado apenas no continente americano, com 4.800 km de extensão e 15 estações de radar de longo alcance, e 39, de curto. É operado conjuntamente por EUA e Canadá, unidos no sistema Norad (Comando de Defesa Aeroespacial Norte-americano). Daí que um dos objetos suspeitos foi derrubado sobre Yukon, território canadense, por um caça F-22 Raptor americano.

Além do risco de um ataque, incursões espiãs eram comuns de lado a lado, levando a incidentes graves, como a derrubada de um avião U2 americano sobre a União Soviética em 1960. Os comunistas, claro, tinham o seu sistema de defesa.

Ao longo da Guerra Fria, propostas para reduzir o perigo foram feitas, desaguando num acordo de 1992, o Céus Abertos, no qual 34 países, Rússia e EUA inclusos, permitiam voos de reconhecimento periódicos de aviões dos rivais, estabelecendo confiança mútua de que ninguém estaria preparando uma ação iminente.

Donald Trump, o mesmo presidente que lançou a Guerra Fria 2.0 para conter a ascensão chinesa em campos que vão do comércio exterior à autonomia de Hong Kong, achou por bem retirar os EUA do pacto em 2020, acusando os russos de violá-lo.

A falta de regramento ajuda a criar incertezas, que estão em todos lados: o último acordo de controle de armas atômicas, o Novo Start, está travado porque não há inspeções de sítios nucleares na Rússia por americanos devido à Guerra da Ucrânia.

A crise dos balões também evoca a paranoia que se demonstrava em surtos periódicos na Guerra Fria. Os agora repetidos casos de avistamento encontram paralelos no anticomunismo dos anos 1950 nos EUA.

Naturalmente, dada a natureza digital dos tempos atuais, a febre deverá passar rapidamente, sem maiores efeitos no imaginário popular como no passado —a ideia de que os soviéticos estavam se infiltrando na sociedade americana para subvertê-la era disseminada, gerando o cancelamento dos suspeitos de simpatia comunista quando essa palavra nem era usada.

O temor era tão espraiado que gerou um fenômeno que tem semelhanças com o da derrubada dos balões: o dos discos voadores. A sucessão de avistamentos de óvnis (Objeto Voador Não Identificado) ganhou ares de crise nos anos 1950, e a Força Aérea dos EUA criou um projeto para estudá-los, o Livro Azul.

De 1952 a 1969, a iniciativa recolheu e analisou centenas de aparições. Sempre houve os casos inconclusivos ou mal explicados, como de resto a mesma Força Aérea e a Nasa registraram recentemente, mas a ideia disseminada por Hollywood de uma guerra dos mundos iminente tinha mais a ver com explorar o temor do americano de ser atacado por soviéticos.

Nem o Brasil escapou da onda no século passado, e não será surpreendente se agora algum balão acusado de espionagem para Pequim aparecer, digamos, sobre a Amazônia. Mas o fato é que a espuma da disputa política apenas escamoteia a realidade: países se espionam mutuamente.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.