Não há boa ou má hora para publicar notícias incômodas, mesmo na guerra, diz jornalista ucraniana

Sevgil Musaieva, editora-chefe do Ukrainska Pravda, afirma que pessoas seguem lendo horóscopo e fofocas em meio ao conflito

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Madri

Pravda é uma palavra maldita do jornalismo. Significa verdade, em russo, e era o nome do principal diário oficial, um instrumento de propaganda, da ditadura da União Soviética (1922-1991).

Ainda assim, foi o termo escolhido em 2000 para batizar uma publicação que surgiu com o objetivo de fazer uma cobertura séria da vida da Ucrânia, antiga república soviética.

O propósito de seu criador, Georgi Gongadze, era dar um novo significado ao termo. Nasceu o Ukrainska Pravda. Gongadze não teve tempo de acompanhar o progresso do jornal que dirigia. Acabou morto no mesmo ano. Funcionários do então governo ucraniano foram condenados pelo assassinato.

uma mulher vestida de preto faz apresentação em um púlpito; ao fundo, seu nome, Sevgil Musaieva
Sevgil Musaieva, editora-chefe do jornal Ukrainska Pravda, durante apresentação na Casa de América, em Madri - Divulgação

A situação do país só se complicou desde então, com as invasões russas e a guerra que nesse momento toma parte de seu território. No momento mais difícil da história da Ucrânia independente, quem lidera o jornal é Sevgil Musaieva, 35.

Ela aparece como uma das cem pessoas mais influentes do mundo na última edição da famosa lista da revista Time. Foi também a estrela de um congresso de jornalismo organizado na semana passada pelo grupo Prestomedia em Madri –o regresso a seu país incluía voar para a Polônia e depois passar dez horas na estrada até Kiev.

Suas descrições mostram que a tensão da guerra se soma às preocupações habituais do ofício fora de países em guerra, que incluem temas empresariais, como manter a viabilidade do negócio, e jornalísticos tradicionais, como apontar a corrupção dos políticos locais.

A audiência atual de seu jornal é de cerca de um terço da do pico, no início do confronto, há quase um ano. O site é banido na Rússia, mas mantém publicações em russo, distribuídas por diferentes caminhos. Sua voz transmite firmeza e tristeza –mas não desânimo.

A sra. esperava que a guerra de fato ocorresse? É uma pergunta difícil e ao mesmo tempo muito simples. Porque essa guerra não é algo que começou em fevereiro de 2022. Começou com a anexação da Crimeia [em 2014], quando a Rússia violou a lei humanitária e o sistema internacional de segurança. Quando a Rússia anexou a Crimeia, talvez não tenha havido resposta adequada para tamanha brutalidade. Como nós não mandamos essa mensagem a eles, continuaram essa violação, rotularam a Ucrânia como fascista, encheram nossa população de propaganda. Agora é uma questão de como e em que circunstâncias essa guerra vai terminar.

E como isso vai acontecer? Agora a Ucrânia luta, faz o possível para parar essa guerra. Isso não depende apenas do nosso esforço, mas também do esforço de todo o mundo civilizado. Não é apenas uma guerra pelo direito de a Ucrânia existir, é se o que vai vencer são a ditadura e a violação dos direitos humanos ou a democracia e o mundo livre. Esse é um momento crucial da história.

Como a guerra mudou seu trabalho, suas rotinas no jornal? Mudou muito, porque o Ukrainska Pravda é um jornal sobretudo político. Nós cobríamos a guerra, claro, mas era como 10% do jornal, agora é 90%. Nós focamos as violações da guerra, mas ao mesmo tempo cobrimos problemas de conduta das autoridades ucranianas, corrupção, política. A vida não parou, ela continua. Queremos que nossos leitores continuem consumindo informação independente, que estejam informados da conjuntura atual por diferentes perspectivas, não apenas a guerra, mas também problemas internos que toda democracia jovem tem.

Mesmo durante a guerra precisamos continuar o desenvolvimento democrático, lutar contra a corrupção, implementar reformas. Claro que houve uma grande discussão quando publicamos essas investigações, recebemos comentários do tipo "será que é um bom momento ou não", mas, para mim, não tem a ver com ser um bom momento ou um mau momento. Isso não é uma questão. O jornalismo é muito, muito importante.

Vocês decidiram publicar os nomes de soldados russos que estavam muito próximos de parentes e amigos de vocês. Como foi essa decisão? Ainda acho que foi a decisão correta. Era difícil imaginar qual seria a consequência. Claro que sonhávamos que essa decisão particularmente pudesse mudar a situação da guerra, mas isso não ocorreu. Um grande amigo, o fotógrafo Maks Levin, foi morto nessa guerra [Levin morreu em março do ano passado; segundo a ONG Repórteres sem Fronteiras, ele foi executado por soldados russos]. Ele disse um ano atrás que queria fazer a foto que pararia a guerra, e ele não conseguiu fazê-la. Mas todos na Ucrânia, todos os jornalistas sonham que algo vá acontecer e parar essa guerra. E algo que a gente possa fazer.

As pessoas se cansaram de notícias da guerra? [A audiência] está caindo, as pessoas estão cansadas. As pessoas infelizmente também consomem as notícias por canais anônimos do Telegram. Tentamos competir com eles, mas é impossível, dados os nossos princípios e as nossas regras. Mas quando há um ataque de míssil, quando há uma ameaça real, nossa audiência explode. As pessoas voltam para nós. Porque elas precisam ter 100% de certeza de que isso é real. Confiam em nós. Mas ao mesmo tempo, mesmo durante a guerra, querem ler horóscopos e fofocas. Isso é normal, é parte da psicologia humana. Mesmo durante a guerra, isso continua valendo.

Na Rússia vocês estão banidos. Chegam via Telegram? Sim, temos nossa versão russa, sei que as pessoas leem nosso noticiário pelas mídias sociais, Instagram, Twitter, Facebook e Telegram. E por isso é que continuamos nossa versão russa. Muitos de nossos colegas ucranianos decidiram fechar suas versões russas. Mas continuamos porque faz parte da nossa estratégia de informar, porque os russos estão sendo bombardeados por propaganda, mas ao mesmo tempo podem ler o Ukrainska Pravda e ter nossa visão da guerra.

Como vocês se financiam? Lançamos nosso clube dos leitores. Realmente acredito no jornalismo independente. Cerca de 2.000 pessoas na Ucrânia e fora do país apoiam o Ukrainska Pravda, então recebemos dinheiro de nossa audiência. Claro que isso não é uma parte muito grande do nosso modelo de negócios, mas ajuda. No mês passado, foram cerca de US$ 10 mil [R$ 52 mil]. Temos doadores e anunciantes. Temos uma versão em inglês que está bombando, e os anúncios na versão em inglês valem mais.

Há um velho ditado que fala que na guerra a primeira vítima é a verdade. Quão morta está a verdade nesta guerra? É um pouco diferente, porque essa guerra é pela verdade. A Rússia usa armas de informação contra a Ucrânia, eles gastam milhões de dólares em interferência híbrida.

Como funciona? Usam muitos canais anônimos do Telegram, usam a TV estatal. Infelizmente nosso campo de informação estava sob influência russa desde o começo dos anos 1990, em regiões agora ocupadas. Então os canais russos dominaram e envenenaram o campo da informação. Para mim, a Ucrânia tem apenas uma chance de vencer essa guerra, que é dar informação verdadeira. A verdade dessa guerra é terrível. Você vê as fotos, e nada pode ser pior do que ver as pessoas sendo mortas por soldados russos. Quando você vê isso, entende onde está a verdade. Essas pessoas foram mortas, e elas não são fascistas. Então talvez tenha algo errado. E aí vê que é preciso apoiar os ucranianos.

A sra. tem 35 anos. Nasceu num país que se chamava União Soviética. Quanto sua vida mudou? Totalmente. Eu nasci no Uzbequistão. Depois minha família pôde vir para minha terra natal. Minha família foi expulsa da minha terra natal em 1944, nos anos de [Josef] Stalin [ditador que comandou a União Soviética de 1924 a 1953]. Minha destinação se encontrou com meu destino, que é a Ucrânia. Nasci a milhares de quilômetros da Ucrânia e, por algum motivo, vim para a Ucrânia, cresci na Crimeia, decidi fazer a universidade em Kiev, e então a Rússia começou a guerra. Isso é difícil de viver, nessas circunstâncias.

Eu tinha 18 anos quando houve o primeiro sentimento democrático da Ucrânia [uma série de protestos conhecida como Revolução Laranja, em 2004 e 2005]. Eu tinha 27 quando o segundo movimento começou e agora tenho 35 no segundo ano dessa guerra. Já investi 17 anos da minha vida no desenvolvimento dessa democracia, e claro que isso me afeta de diferentes maneiras, a começar pela vida privada. Mas acho que isso é como ter um encontro marcado para sua geração. E, para a minha geração, o encontro marcado é tão difícil e desafiador. Ao mesmo tempo, é tão importante, de tanta responsabilidade, que não temos chance de não aceitá-lo.


Raio-X | Sevgil Musaieva, 35

Editora-chefe do jornal digital Ukrainska Pravda desde outubro de 2014, depois de trabalhar para outras publicações. Nasceu em Juma, no Uzbequistão, e estudou jornalismo em Kiev, capital da Ucrânia. Ajudou a criar o portal CrimeiaSOS, após a invasão russa.

O jornalista viajou a Madri a convite do grupo Prestomedia

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