Destruição na Turquia expõe falhas de planejamento urbano e construções de má qualidade

Em 2018, Erdogan concedeu perdão de multas às vésperas das eleições; brechas legais estimulam edificações irregulares

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São Paulo

As imagens de prédios reduzidos a ruínas ao lado de edifícios sem grandes avarias aparentes levantaram discussões entre especialistas sobre a qualidade das construções na Turquia após o terremoto que devastou cidades e deixou mais de 20 mil mortos no país até esta sexta-feira (10).

O tipo de planejamento urbano e a falta de coordenação entre leis e regulações sobre o tema, além de sua politização, também são alvo de críticas. Um exemplo é a decisão de Recep Tayyip Erdogan, em 2018, que concedeu anistia a responsáveis por construções irregulares pouco antes das eleições daquele ano.

Ele era o favorito, embora estivesse diante de um cenário de turbulência política e desvalorização da lira.

Vista aérea de prédios derrubados por terremoto em Hatay, no sudeste da Turquia - DHA - 8.fev.23/via AFP

A medida era parte de um pacote de perdão de dívidas e tinha como alvo uma imensidão de construções irregulares do país. Para os proprietários de imóveis com alguma anormalidade, bastava se inscrever em um site no qual eram solicitados documentos pessoais e informações do imóvel, além de pagar uma taxa que seria calculada de acordo com o valor da construção e da área. Dali em diante, o imóvel seria considerado regularizado, teria multas perdoadas e poderia acessar as redes de energia, água e gás.

Em julho de 2018, cerca de um mês após a eleição, o número de inscrições para a regularização passou de 2,6 milhões, segundo artigo publicado na Revista Turca de Engenharia em 2020. Com poréns: em fevereiro de 2019, 21 pessoas morreram no desabamento de um edifício residencial que tinha três de seus oito andares construídos ilegalmente —o imóvel, porém, havia sido regularizado pela medida presidencial.

"[A anistia] significa a transformação das nossas cidades, notadamente Istambul, em cemitérios e resultará em caixões saindo das nossas casas", afirmou à época Cemal Gokce, então presidente da Câmara de Engenheiros Civis do país. "As construções estão completamente irregulares ou têm mais andares do que o projeto original, mas mesmo assim puderam ser anistiadas. Isso é muito perigoso."

Construções informais não são novidade na Turquia, tampouco seu uso político desde metade do século 20, quando o país começou seu salto em termos de urbanização. De acordo com o Banco Mundial, apenas 32% da população do país vivia em áreas urbanas em 1960, ante 77% em 2021 —no Brasil, os dados correspondentes a esses anos são 46% e 87%, respectivamente.

Nos anos 1980, o país legalizou bairros inteiros, com destaque para os "gecekondu" (algo como "feito da noite para o dia"), construções informais que cresceram especialmente em grandes cidades e que fazem parte do cenário urbano do país. A medida acabou estimulando novos empreendimentos irregulares.

A atividade informal é aspecto importante da construção civil turca, que por sua vez correspondeu a 5,4% do PIB do país em 2020, ano em que o setor recebeu investimentos de € 78 bilhões (R$ 435 bilhões, em valores não corrigidos), de acordo com a Federação Europeia da Indústria de Construção.

"O fator número 1 [para a escala da destruição do terremoto desta semana] foi a qualidade das construções", disse à revista Scientific American Ross Stein, CEO da Temblor, empresa especializada na modelagem de catástrofes como a dos tremores desta semana. "A qualidade construtiva é controlada por leis de construção e sua fiscalização. A Turquia tem legislação moderna sobre o assunto desde o terrível terremoto de 1999, em Izmit [que deixou mais de 17 mil mortos]. Então, por que os prédios caíram? Eles eram antigos? Ou não foram devidamente reforçados?", questionou.

Peli Pinar Giritlioglu, presidente da filial de Istambul da União das Câmaras de Engenheiros e Arquitetos Turcos, fez análise semelhante. "A devastação extraordinária é perpetuada pela persistência em repetir políticas de urbanização falhas e de decisões politicamente carregadas, como a lei de anistia de 2018."

Erdogan tem sido criticado pela população afetada pelo sismo desta semana devido à demora na chegada de socorristas e à falta de assistência em meio ao frio e à fome. Em Gaziantepe, uma das cidades atingidas, a população questiona o que foi feito do dinheiro recolhido com a chamada "taxa de terremoto", um pacote de novos impostos implementado no país após o tremor de 1999. Suas receitas, estimadas em US$ 4,6 bilhões (cerca de R$ 24 bilhões), supostamente foram revertidas para a prevenção de catástrofes como a de agora e na promoção de serviços de resgate. Os efeitos, no entanto, ainda não estão claros.

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