Descrição de chapéu The New York Times

Famílias mudam e aceleram ritos fúnebres na Turquia diante de tantos mortos

Terremoto matou mais de 19 mil pessoas no país, e cerimônias islâmicas são adaptadas para lidar com demanda de enterros

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Kapicam (Turquia) | The New York Times

A mãe chorava ao lado da ripa de madeira que assinalava o lugar onde seu filho fora enterrado, num monte de terra que continha também dezenas de outros corpos de mortos no terremoto na Turquia.

Numa forma reduzida dos ritos fúnebres costumeiros, o corpo tinha sido purificado como requer a tradição islâmica, envolto numa mortalha branca e colocado na terra, dando à mãe, Gullu Kolac, um momento de dignidade e despedida final durante uma semana de tragédias que se acumulam.

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Sobreviventes carregam corpo resgatado de prédio que desabou em Kahramanmaras, na Turquia, após terremoto - Emin Ozmen/The New York Times

Em volta dela no cemitério havia muitos outros novos montes a perder de vista, contendo centenas de sepulturas. Escavadeiras mecânicas abriam novas valas ali perto. O terremoto de magnitude 7,8 que sacudiu o sul da Turquia na segunda (6) matou tantas pessoas em tão pouco tempo que sobrecarregou os serviços fúnebres, acelerando o processo pelo qual as famílias se despedem de seus mortos.

Foram deixados de lado os rituais em que familiares lavam o cadáver e o envolvem numa mortalha, realizam uma cerimônia e recebem parentes e amigos para oferecer condolências. O contexto imposto pela crise visa honrar os mortos e sepultá-los rapidamente, em nome dos costumes e da saúde pública.

A tragédia transformou o cemitério do vilarejo de Kapicam, perto do epicentro do terremoto. Em tempos normais, seria um lugar sereno, cercado por uma floresta, à sombra de pinheiros majestosos e com um panorama distante de montanhas com picos nevados. Mas, na quinta (9), três dias após o terremoto, o cemitério estava lotado de famílias enlutadas e corpos em cobertores ou fechados em sacos mortuários.

A maioria dos corpos chegava em caminhões, ambulâncias ou veículos de funerárias, após terem sido tirados dos escombros de construções destruídas. Estavam espalhados pelo chão, às vezes em grupos de 12 ou mais, à espera de familiares que viessem reclamá-los ou de receber os preparativos finais para o sepultamento. Uma fila de homens atravessava o cemitério de um lado a outro carregando sacos mortuários das tendas onde cadáveres estavam sendo preparados para as valas onde seriam sepultados.

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Equipes de resgate procuram pessoas em prédio que desabou em Kahramanmaras, na Turquia - Emin Ozmen/The New York Times

Adnan Beyhan, funcionário religioso que viera de uma cidade distante para ajudar na resposta ao tremor, disse que, devido às condições de crise, os ritos fúnebres muçulmanos estão tendo que ser adaptados.

Muitos dos corpos que chegavam tinham sido desfigurados por escombros ou haviam começado a se decompor, explicou. Por isso, não poderiam ser despidos e lavados em água antes de serem envoltos em mortalhas, como é feito sob circunstâncias normais.

Por essa razão, alguns foram deixados nas roupas que estavam usando, e as pessoas que estavam preparando os corpos usavam uma prática islâmica conhecida em turco como "teyemmum", que permite que vítimas de desastres sejam "lavadas" com pedras ou terra passadas suavemente sobre elas.

Em seguida, são embrulhadas em panos brancos para serem sepultadas.

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Um homem chora no local onde as famílias podem recuperar os corpos de seus entes queridos - Emin Ozmen/The New York Times

Beyhan disse que nem todas as famílias aceitam a prática. No dia anterior, um homem que perdera um parente perguntou se é aceitável no islamismo sepultar pessoas dessa maneira. "Falei a ele: ‘É claro que sim. E elas têm o status de mártires’", visto no islamismo como benção. Beyhan disse que o homem partiu aliviado. Para muitos, a própria espera já é um sofrimento. Segundo a tradição islâmica, os mortos devem ser sepultados no menor prazo possível.

Cengizhan Ceyhan tinha ido ao cemitério para o enterro de sua irmã, Saziye Ozer, e a filha dela, Beliz, 10, mortas sob os escombros de um prédio que ruiu. "Se fosse um acidente de carro, poderíamos estar com elas imediatamente, lavá-las imediatamente. Mas, deste jeito, você sabe que estão mortas, mas é obrigado esperar. Ainda tem esperança, e isso é doloroso. Você não quer aceitar que elas estejam mortas."

Para Kolac, que veio enterrar seu filho, a ida ao cemitério foi uma escala num caminho recheado de tragédias. Três de seus familiares foram soterrados sob escombros: seu filho, Yakup Bulduk, 22 , a esposa de seu outro filho e o filho de 2 anos de idade deles.

O processo fúnebre é sistematizado, embora um pouco caótico. Os corpos que chegam ao cemitério são checados para ser feito o registro oficial da morte e emitido uma certidão de óbito. A maioria dos corpos está sendo identificada, mas a polícia registra as impressões digitais dos que não o são e em alguns casos colhe amostras de sangue. A informação é registrada em um sistema do governo juntamente com o número da sepultura da pessoa, para que parentes possam encontrá-la.

Os corpos são entregues a equipes que trabalham para o departamento religioso do estado. Estes os levam para tendas –algumas para homens, outras para mulheres— para prepará-los para serem sepultados, envoltos num pano branco. Em seguida são colocados em sacos mortuários e deitados sobre mesas, onde seus familiares oram por eles, como fariam normalmente numa mesquita.

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Cemitério onde as vítimas do terremoto estão sendo enterradas em Kahramanmara - Emin Ozmen/The New York Times

Depois disso, eles são carregados até as valas e cobertos de terra por uma máquina de terraplanagem. Algumas famílias acrescentam pequenos toques pessoais ao local, escrevendo o nome da pessoa na ripa com uma caneta, amarrando um cachecol ou colocando flores. Dois túmulos adjacentes tinham meias cor-de-rosa com desenho de cavalos brancos, como se fossem de duas irmãs, possivelmente gêmeas.

A proximidade com a morte também pesa sobre os funcionários. Um religioso que ajudava a purificar os corpos disse que ele e seus colegas ficaram deprimidos após lidar com tantos corpos mutilados. "Mas nos abrigamos em Deus", disse, negando-se a dar seu nome porque não é autorizado a falar com jornalistas. "Nos esforçamos para não desanimar, porque o que está ali é algo valioso –um ser humano."

Tradução de Clara Allain

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