Em meio às tensões em 2001 após os atentados terroristas do 11 de Setembro, uma das vítimas indiretas foi o embaixador José Maurício Bustani. O diplomata brasileiro era diretor-geral de uma importante agência da ONU, a Opaq (Organização para a Proibição de Armas Químicas).
Ele foi defenestrado de seu posto em manobra abertamente chefiada pelos EUA porque os inspetores a ele subordinados não podiam comprovar a tese americana de que o Iraque estava clandestinamente empenhado na produção de armas de destruição em massa.
O ditador iraquiano Saddan Hussein, que no passado chegou a usar armas químicas contra os iraquianos xiitas do sul de seu país, não tinha mais essas armas em seus arsenais.
Não que ele tivesse se convertido à ética. Mas o Iraque estava submetido a um forte embargo econômico, com o qual era difícil trapacear a proibição de fabricar armamentos. Mas a falsa certeza era necessária para justificar a invasão do Iraque em 2003 por americanos, britânicos e países a ambos alinhados.
A história do embaixador Bustani é contada pelo documentário "Sinfonia de um Homem Comum", que estreou nesta quinta-feira (9) nos cinemas. Dirigido por José Joffily, o filme é uma bem construída denúncia sobre como as chamadas razões de Estado produzem grandes mentiras internacionais.
Com relação ao Iraque, ocorreu a trombada entre duas lógicas. A do presidente George W. Bush consistia em fazer crer que a ditadura iraquiana tinha até armas nucleares escondidas dos ocidentais. A lógica da Opaq, ao contrário, era a de fazer com que o Iraque se tornasse signatário do tratado internacional que proíbe armas químicas, para que inspetores passassem a fazer uma varreduras de suas instalações.
Já havia inspeção dentro do Iraque. Mas ela cobria 95% dos arsenais. Os americanos achavam que os 5% restantes escondiam coisas proibidas. O documentário traz uma sucessão de depoimentos que provam a fragilidade da suposição de que Bustani deixava que armas perigosas passassem por debaixo de suas pernas. Do ex-chefe dos inspetores no Iraque ao ex-porta-voz de Bush, todos admitem erros.
Mas o cerco dos Estados Unidos era cerrado. A única parede não envidraçada do gabinete do diplomata brasileiro em Haia, na Holanda, estava forrada de aparelhos escondidos de escuta. O cidadão que os instalou desapareceu ao ser descoberto. Ele com certeza era agente americano.
O jogo era pesado ao ponto de o presidente Bush ter contornado o Senado (que estava em recesso) para nomear como embaixador na ONU o ultraconservador John Bolton. Este, ao não convencer Bustani a renunciar, disse saber onde moravam seus três filhos, numa pouco velada ameaça à segurança pessoal dos jovens.
Bolton voltou ao primeiro plano com o presidente Donald Trump e chegou a ser apontado como um dos bons amigos de Jair Bolsonaro.
Outro detalhe curioso. A sessão plenária da Opaq em que Bustani foi demitido inexiste em atas no site ou em gravações na biblioteca da agência. Tais registros, diz o diplomata, mostrariam de modo cabal as vaias ao representante americano e ao da Índia, que mudou seu voto para receber do Pentágono aviões militares.
Um dos inspetores afirma que o Iraque tinha tecnologia para conservar armas químicas durante no máximo cinco anos. E que, nos cinco anos anteriores, nada havia sido fabricado.
Bustanni diz acreditar que a única maneira de evitar o blefe de Saddam estaria em fazê-lo aderir ao tratado da Opaq para que o conteúdo de seus estoques de armas se tornasse transparente.
O documentário poderia ter ainda revelado que o establishment americano envenenou com falsas informações uma jornalista do New York Times, para quem Saddam produzia escondido até ogivas nucleares. A jornalista em questão, chamada Judith Miller, foi demitida tempos depois.
A demissão, ou "afastamento por comum acordo", foi uma maneira de o jornal americano se desculpar por ter engrossado o coro dos que acreditavam que Saddam, por ser um ditador horroroso, não poderia estar dizendo a verdade ao negar que estava lidando com as célebres armas de destruição em massa.
O fato é que, afastado em manobra americana, Bustani voltou ao Itamaraty, onde caiu no limbo dos mal-amados. Até que Lula, recém-eleito presidente, nomeou-o para a embaixada de Londres. A estrela do diplomata voltou a brilhar.
Ela também poderia tê-lo projetado como músico. Pianista amador, ele sempre demonstrou familiaridade pelo teclado. Tanto que o documentário começa com Bustani interpretando, com a Orquestra Jovem do Rio de Janeiro, o "Concerto para Piano e Orquestra nº 21", de Mozart.
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