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China Coronavírus

China vê atos encorparem, mas é errado pensar que protestos são incomuns

Em um país onde os líderes não são escolhidos pelo voto, pessoas tentam se fazer ouvidas por manifestações

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Rodrigo Zeidan

Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Em uma noite chuvosa em meados de abril, os vizinhos do meu condomínio começaram a bater panelas e gritar pelas janelas, frustrados com mais de um mês de isolamento. Esse protesto durou poucos minutos e não se comparou ao que se viu em outras áreas da cidade, mas revelou algo que muitos acham que é incomum na China: as pessoas nem sempre aceitam as regras do governo sem reclamar.

Estávamos no meio do lockdown de mais de 60 dias em Xangai, onde até supermercados fecharam por boa parte do período, e passávamos parte dos nossos dias, especialmente no início do isolamento imposto, procurando formas de conseguir comida —o que, felizmente, foi somente trabalhoso.

Homem abraça mulher enquanto policiais pedem às pessoas que deixem uma área em Xangai onde protestos contra a política de Covid zero ocorreram - Hector Retamal - 27.nov.22/AFP

Foram dezenas, senão muito mais, os protestos em Xangai durante o período mais pesado do lockdown, que durou do início de abril até 1º de junho. Em alguns casos, autoridades locais mandaram drones pedindo que as pessoas se acalmassem e parassem de gritar.

O que muitos brasileiros não entendem é que, na China, protestos não só são comuns, mas são a forma mais direta da sociedade pressionar as autoridades locais. Em um país onde os líderes não são escolhidos diretamente pelo voto, é por meio de protestos, organizados ou espontâneos, que as pessoas tentam se fazer ouvidas.

Algumas vezes funcionam, outras, não.

Me lembro de, em 2012, ver tanques pelas ruas de Ningbo, cidade com o maior porto do país, para tentar conter os protestos de milhares de pessoas contra a abertura de uma planta industrial química. Ningbo enriquecia rapidamente, mas as pessoas estavam cansadas de respirar o ar poluído. O que aconteceu? A sociedade civil ganhou: o governo local revogou a autorização para a construção da petroquímica.

Nem sempre é assim, claro, e nem sempre as autoridades ficam na defensiva. É também importante notar que autoridades locais sobem na carreira por entregar crescimento econômico e estabilidade social. Protestos fora de controle destroem carreiras políticas, mas sair batendo em todo mundo também. Quem protesta sempre corre riscos, mas menos de violência física do que de retaliação posterior de governos locais. É só ver que os protestos recentes não estão sendo contidos com violência, algo que provavelmente escalaria o problema e ainda colocaria em risco a carreira dos governantes locais.

Manifestantes em Ningbo, na província de Zhejiang, contra a expansão de uma planta química na região - 28.out.12/Reuters

Enquanto protestos forem locais, Pequim tenderá a não se meter. Ainda é cedo para saber, mas os recentes protestos contras as medidas duras de lockdown em várias áreas da China podem ter um caráter diferente. O número de protestos está crescendo e, em alguns lugares, há notícias de gritos contra o regime e o líder Xi Jinping, algo muitíssimo incomum.

O aumento em si do número de protestos é fácil de entender. Recentemente, Pequim anunciou várias medidas de relaxamento das políticas de contenção contra a disseminação do coronavírus. Contudo, as autoridades locais, que são responsáveis pela implementação dessas medidas, não responderam de forma uniforme ao relaxamento.

Em Guangzhou, com o número de casos aumentando, o governo tentou levar um número grande de pessoas para isolamento, e muita gente simplesmente se recusou. Em vários vídeos, vemos grupos de pessoas em confronto aberto com as autoridades sanitárias, derrubando as barreiras de isolamento.

Até aí, é compreensível, já que há sinais cruzados: de um lado, o governo central relaxando medidas de combate ao vírus, e, do outro, autoridades locais impondo medidas duras de isolamento.

Entretanto, o que mexeu mesmo com as pessoas foi o caso do incêndio em Urumqi, capital da província de Xinjiang, que matou ao menos 10 pessoas. Várias partes da cidade estão em lockdown há três meses. O prédio estava em uma comunidade isolada há semanas e muitos acreditam que isso impediu que as pessoas escapassem e a ajuda tivesse chegado a tempo (as autoridades locais negam).

Para o resto da China, um lockdown longo já traz um custo imenso, mas ainda ter risco de perder a vida pelo que muitos veem como negligência das autoridades locais? Inaceitável. Por isso, protestos começaram a pipocar por todo o país, especialmente nas áreas em que governos locais anunciavam lockdowns.

Esses protestos não são um sinal de fraqueza do governo central, mas isso não quer dizer que não podem se transformar nisso. Na sua grande maioria, os chineses ainda apoiam medidas de contenção contra o vírus, já que as pessoas acham que deixar o vírus se espalhar seria o caos. Chineses estão acostumados a ações coletivas, mas todos estão cansados das incertezas em relação às regras de combate da Covid.

No fundo, o que as pessoas pedem é que as autoridades locais sejam competentes nas suas atribuições. Se for para ter lockdown em uma comunidade, as regras devem ser claras e respeitadas. Ninguém quer viver o que passaram as pessoas em Xangai, mas também não querem o vírus se espalhando. E esse é o dilema das autoridades: como conviver com um aumento no número de casos de Covid sem que isso resulte em medidas duras de contenção ou crescimento explosivo do número de mortes, algo que não será aceito pela sociedade.

A política de Covid zero salvou dezenas de milhões de vidas na China, algo que é inegável. Mas a transição para "conviver com o vírus" não vai ser fácil. Vai ser feito. Resta saber como.

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