Primeira 'fiscal de calor' da África luta para driblar crise climática em Serra Leoa

Cargo criado com apoio de fundação americana já plantou árvores e instalou coberturas em feiras livres

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Elian Peltier
Freetown | The New York Times

Antes que Freetown, a capital de Serra Leoa, se tornasse uma metrópole em expansão —devastando colinas arborizadas e invadindo o Atlântico—, Eugenia Kargbo amava as praias imaculadas e as florestas exuberantes que antigamente envolviam a cidade.

Kargbo, que cresceu na capital na década de 1990, gostaria de vê-la recuperar a paisagem. E, como primeira diretora de Calor de Freetown, cargo criado em 2021, essa é sua missão aparentemente impossível: tornar a cidade verdejante e habitável novamente, ajudando-a a lidar com o aumento das temperaturas e outras mudanças climáticas.

Esses problemas, aliados a décadas de desenvolvimento urbano descontrolado, deixaram a capital propensa a deslizamentos de terra mortais e inundações anuais, com ondas de calor quase o ano inteiro.

Eugenia Kargbo, Freetown's first chief heat officer, by newly installed market canopies at Congo Market in Freetown, Sierra Leone, Nov. 18, 2022. Kargbo remembers when Sierra LeoneÕs capital was greener and cooler, and is now trying to help the city combat rising temperatures. (Yagazie Emezi/The New York Times)
Eugenia Kargbo, diretora de Calor de Freetown, posa em mercado da capital de Serra Leoa - Yagazie Emezi/The New York Times

"O calor é invisível, mata silenciosamente. Crianças não dormem devido à temperatura extrema. Isso afeta a capacidade de aprender, a produtividade dos pais", diz Kargbo na prefeitura, um edifício enorme com ar-condicionado que se ergue sobre dezenas de assentamentos informais que pontilham a capital da pequena nação da África Ocidental.

Na cidade de 1,2 milhão de habitantes, até 60% deles vivem em moradias improvisadas, com telhados e paredes de metal que fazem delas fornos na maior parte do ano. O país é um dos mais pobres do mundo; pouca gente tem ar-condicionado e não há dinheiro suficiente para financiar soluções ambiciosas. Por onde começar? Kargbo busca primeiramente soluções de curto prazo: "As pessoas estão sofrendo agora".

Aos 35 anos, mãe de dois filhos, ela era criança quando Serra Leoa mergulhou na guerra civil que durou uma década e deixou pelo menos 50 mil mortos. Estudou na Universidade de Serra Leoa e em Milão e começou a carreira trabalhando em um banco.

Quando ela formou família, Freetown começou a sofrer com dias mais quentes e desastres relacionados ao clima. Kargbo então foi atraída para um cargo no governo. Em 2017, um deslizamento de terra nas encostas da capital que matou mais de 1.100 pessoas serviu como alerta.

A missão de diretora de Calor é parte do plano "Transformar Freetown", defendido pela prefeita Yvonne Aki-Sawyerr. O cargo foi criado e é financiado pelo Centro de Resiliência da Fundação Adrienne Arsht-Rockefeller, parte do Atlantic Council, sediado em Washington.

Kargbo diz que queria criar os filhos, um menino de 11 e uma menina de 8 anos, em uma cidade com parques e fontes públicas. Ela imagina uma Freetown mais verde e mais fresca, onde as praias intocadas pelas quais andou na juventude sejam preservadas em vez de sujeitas à extração ilegal de areia e onde as árvores sob as quais se sentava sejam protegidas, em vez de cortadas para construir mais casas. "Freetown era linda. Vi essa beleza desaparecendo."

No posto, ela instalou jardins públicos que são pequenos oásis de frescor para idosos que tomam chá sob a sombra de árvores. Também montou coberturas em feiras, para proteger os vendedores que passam longas horas sob sol escaldante. Ela quer instalar telhados brancos nas construções para refletir o calor em vez de absorvê-lo, construir fontes públicas e plantar muitas, muitas árvores.

Kargbo também é responsável pelas políticas de saneamento da cidade e prometeu substituir a maioria dos lixões ilegais da cidade por espaços verdes. Mas não se sabe se vai conseguir implantar tudo isso.

O calor extremo e prolongado debilita o corpo; alguns dos efeitos a longo prazo já sobrecarregam países em grande parte do mundo. Freetown tem um clima equatorial, de pouca variação de temperatura ao longo do ano, e quase não há trégua à noite. As médias variam de 24°C a 30°C, com picos regulares entre 37°C e 43°C.

Em 2020, houve pouco mais de 30 dias com temperatura média acima de 27°C, mas até 2050 a cidade espera ter temperaturas assim durante quase metade do ano, segundo a consultoria Vivid Economics.

Newly installed market canopies at Congo Market in Freetown, Sierra Leone, Nov. 17, 2022. Eugenia Kargbo, Freetown's first chief heat officer, remembers when Sierra LeoneÕs capital was greener and cooler, and is now trying to help the city combat rising temperatures. (Yagazie Emezi/The New York Times)
Coberturas recém-instaladas pelo departamento de Kargbo em mercado de Freetown, para atenuar efeitos do calor sobre os feirantes - Yagazie Emezi/The New York Times

Em Kroo Bay, assentamento de 18 mil habitantes, as famílias muitas vezes dormem do lado de fora, porque à noite fica muito quente dentro de casa. "O verão passado na Europa fez com que muita gente percebesse que o aquecimento global está acontecendo agora, mas aqui testemunhamos isso há anos."

Kargbo é uma das sete mulheres nomeadas diretoras de Calor pela fundação Arsht-Rockefeller em quatro continentes. Kathy Baughman McLeod, diretora do programa, diz esperar que o trabalho seja replicado em outros países africanos: "Esse papel ou algo semelhante vai surgir em todo lugar, porque os líderes vão precisar agir visível e tangivelmente para proteger as pessoas. Eugenia é a cara do calor".

Mas, por enquanto, o trabalho e o salário de Kargbo dependem de verba estrangeira. O Banco Mundial, agências da ONU e parceiros privados pagam por seus projetos. "As Câmaras Municipais na África não estão bem equipadas para lidar com fenômenos importantes, mas nem sempre óbvios, como ilhas de calor urbanas. O trabalho de Kargbo até agora é notável", diz Wanjira Mathai, ambientalista queniana.

Críticos, no entanto, frisam que ela pode alcançar um efeito limitado: o problema é muito grande para qualquer autoridade enfrentar sozinha. "Da mineração de areia descontrolada a deslizamentos de terra, Freetown é um perigo geográfico que não dá para ser corrigido", aponta Alhaji U. N'jai, professor de ciência ambiental no Fourah Bay College da Universidade de Serra Leoa.

Outro projeto defendido por Kargbo que atraiu manchetes era um plano que previa plantar 1 milhão de árvores até o fim de 2022. A iniciativa "Freetown, cidade das árvores", porém, foi retardada pela falta de financiamento e contou com pouco mais de 550 mil plantas —das quais 450 mil sobreviveram.

Segundo a diretora de Calor, os desafios da cidade foram agravados pela relação tensa do governo federal com a administração de Aki-Sawyerr, da oposição. "Causas profundas não são tratadas: árvores ainda são cortadas em Serra Leoa, casas ainda são construídas em encostas e pessoas ainda depositam lixo perto do mar. Recebemos pouco financiamento do governo, mas, quando ocorre um desastre, a população se volta para nós."

Kargbo diz que, por enquanto, o calor intenso torna a vida diária em Freetown insuportável para muitos moradores e que o clima também pode afetar os ânimos. "Também perco a paciência quando a temperatura está alta. Não percebemos, mas o calor incita a violência."

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