Ativista no Líbano combate casamento precoce com conscientização de adolescentes

Em meio a colapso financeiro, Nada Ragheb milita pela educação de meninas de seu vilarejo

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Anne-Marie El-Hage
L’ORIENT LE JOUR

"Se tivessem me dito que o casamento era isso, nunca teria me casado tão jovem."

Nariman, 22, mãe de dois filhos, de 5 e 6 anos, fala como quem reconhece uma derrota. Ela se arrepende de ter se casado aos 15 anos com Ala’, um ano mais velho, de ter abandonado a escola ainda no primário, de não ter nenhuma qualificação para conseguir um emprego e tirar sua família da pobreza.

No único cômodo aquecido de uma casa de Faour, vilarejo sunita no Bekaa, no Líbano, as mulheres, seus filhos e netos se reúnem em volta de um fogão a lenha. Tomam café, comem doces e fumam narguilé.

A conversa trata dos casamentos precoces, que crescem em meio a uma crise que paralisa o Líbano desde 2019 e que, segundo a ONU, "mergulhou mais de 80% da população abaixo do limiar da pobreza".

Moradores reunidos em volta de um forno a lenha no vilarejo de Faour
Moradores reunidos em volta de um forno a lenha no vilarejo de Faour - João Sousa

A discussão é conduzida por Nada Ragheb, moradora da vila. Ela milita há anos pela educação das meninas e contra o casamento de menores de idade. Trata-se de uma iniciativa que colide com a indiferença do Estado, a ignorância das famílias e os tabus que limitam a independência das mulheres.

Antes das eleições, eles prometem maravilhas

Aninhado numa encosta no leste do Bekaa, Faour parece um lugar esquecido pela civilização. Com ruas esburacadas, lixo espalhado, esgotos correndo a céu aberto, casas pobres com fachadas decrépitas e crianças ociosas, a vila é habitada por beduínos hoje sedentários, originários da Síria.

Pessoas são descritas na região como "beduínos árabes" ou "árabes de Faour", com um toque de desdém na palavra e no gesto, devido aos seus costumes ancestrais, às leis tribais, às origens sírias, logo, distantes. Rifaat el-Nemer, o mukhtar local, como é chamado o chefe do vilarejo, diz que, "de cerca de 28 mil habitantes naturalizados, 9.000 são eleitores" a quem se prometem mundos e fundos antes de pleitos. E depois deles, nada. "As promessas de construir uma escola pública nunca foram cumpridas", reclama.

"Éramos adolescentes e nos amávamos", recorda Nariman. "A decisão de nos casar foi a pior de nossas vidas." Seu marido concorda. A vida é duríssima nesses tempos de crise. Seus filhos estão entediados. Eles não vão à escola e ainda não aprenderam a ler. Como "metade das 1.500 crianças da vila em idade de ser escolarizadas", lamenta Rifaat el-Nemer. A escola mais próxima fica a meia hora de carro —a distância é um obstáculo intransponível para as famílias em situação financeira precária.

A ativista Nada Ragheb e sua filha, que faz lição de casa, com o mukhtar Rifaat el Nemer
A ativista Nada Ragheb e sua filha, que faz lição de casa, com o mukhtar Rifaat el Nemer - João Sousa

"Mas conseguimos lhes dar o que comer. Impossível assumir o custo do transporte escolar, que explodiu com o desabamento da libra", diz o pai delas. Quando não estão desempregados, os homens da vila –trabalhadores agrícolas, operários ou motoristas— sofrem o efeito da queda brutal da moeda nacional, que em três anos perdeu mais de 90% de seu valor.

"Meu marido trabalha um dia em cada dez", lamenta Nariman. "Estou disposta a tudo para ajudá-lo –aprender uma profissão, fazer treinamentos. Mas não há nada para mim." Nada a não ser trabalho agrícola, pelo qual se paga uma ninharia, ou trabalho doméstico, em casas de famílias ricas de cidades vizinhas, mesmo que isso signifique ser explorada.

Pobreza extrema é uma das causas

Faour já conheceu tempos melhores. Houve época em que surgiram projetos para ajudar essa cidade ignorada pelo Estado. Desde 2011, contudo, a ajuda secou, e o interesse dos doadores internacionais se voltou para os refugiados sírios. "Tentamos muito incentivar as famílias a educar suas filhas. Mas elas são tão pobres que se casam quando chegam à adolescência", afirma Nawal Moudallali, fundadora da associação local Sawa para o desenvolvimento, que trabalha pelos direitos das meninas.

"A única alternativa que resta é lhes ensinar pequenos ofícios, para serem manicures ou cabeleireiras."

Também o mukhtar abriu uma escola gratuita. Mas desistiu depois de dez anos, devido à falta de recursos. "A escola da vila tinha 680 alunos", diz ele. Os alunos foram transferidos para as escolas de cidades vizinhas ou interromperam seus estudos por falta de condições econômicas.

Primeira mulher do vilarejo a ter concluído o ensino fundamental, Ragheb, que está na casa dos 40 anos, nunca desistiu da questão. Após a experiência trabalhando para a Sawa, ela hoje é funcionária de uma ONG que atua pela saúde reprodutiva das mulheres e também se mobiliza a título pessoal.

Com ou sem recursos, ela vai continuar a conscientizar as mulheres de Faour sobre os perigos do casamento precoce. O mukhtar a segue de perto, acompanhado pelas mães de famílias que foram persuadidas. Ragheb oferece, sobretudo, um exemplo. Seus dois filhos mais velhos estudam e já estão se lançando no mundo do trabalho. Os dois menores fazem a lição de casa assiduamente.

Lugar de mulher é... na cozinha

Os esforços de Ragheb estão dando frutos. Anwaar, 21, estudante de letras árabes, tem muitas ambições na cabeça e já sonha em fazer mestrado em psicologia e depois doutorado. "Quero me tornar um membro excepcional da sociedade para contribuir para o desenvolvimento de minha vila", promete ela.

Mesmo que isso implique sofrer a pressão de quem a cerca. "Vá se casar, as pessoas me dizem. Lugar de mulher é na cozinha, não na universidade, que exige tanto dinheiro para transporte, roupas e alimentação."

Mas ela persiste, tendo o apoio de sua mãe, analfabeta, e de seu pai, que se preocupa com ela e se orgulha de suas conquistas. Anwaar já está se mobilizando socialmente, criou uma biblioteca gratuita e entrou para um grupo militante. Ao mesmo tempo, ciosa de sua independência, dá aulas particulares.

A ambição de Anwar não tem nada de desmedido. Mas, neste vilarejo conservador e com alto índice de analfabetismo, ela ainda é uma raridade. "Poucas pessoas daqui chegaram a concluir o ensino fundamental", diz Douha’, 22, formada em ciências de enfermagem. "É muito difícil."

Ela fala da distância do vilarejo para a universidade, do alto custo dos transportes, da greve dos professores, dos desafios do estudo online durante a pandemia de Covid. Se ela continuou a estudar, foi graças ao apoio de sua família, conscientizada pelos argumentos de Ragheb. E também graças ao incentivo de duas amigas estudantes que se esforçam muito, como ela.

Pessoas como Anwaar e Douha’ podem ser contadas nos dedos da mão e estão dando um exemplo às meninas de Faour. Elham, 16 anos e cara de criança, dá uma tragada no narguilé. Casada há cinco meses, ela ignorou os conselhos das feministas, "por amor". "Fiz de tudo para impedir que eles partissem tão jovens", queixa-se sua sogra, Mariam. "Eles não me deram ouvidos, e meu filho a levou embora."

Ragheb constata com amargura: "A crise econômica, a ociosidade dos jovens e a mentalidade retrógrada que não deixa jovens namorarem sem se casar estão levando os casamentos precoces a crescer de novo."

Depois de ser reprovada na escola e do fracasso de suas tentativas de cursar contabilidade, Elham não viu mais perspectivas senão viver com Issa. O jovem casal não tem um tostão. Seu marido trabalha para um torneiro mecânico. Ela aguarda o retorno dele à casa dos sogros, onde estão vivendo.

"Claro que eu me arrependo", deixa escapar a jovem casada. Resta a esperança de dias melhores, caso se concretize a promessa de um país amigo de financiar a construção de uma escola pública em Faour.

Esta reportagem faz parte do projeto Towards Equality, iniciativa internacional e colaborativa que inclui 14 veículos de imprensa para apresentar os desafios e soluções para alcançar a igualdade de gênero.

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Tradução de Clara Allain

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