Lições da Guerra do Iraque se refletem no conflito da Ucrânia 20 anos depois

Emprego de forças combinadas, peça-chave do sucesso em 2003, desafia Moscou e Kiev no embate no Leste Europeu

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São Paulo

Quando os primeiros mísseis de Vladimir Putin atingiram seus alvos na madrugada do dia 24 de fevereiro de 2022 na Ucrânia, a reação imediata do analista militar russo Ruslan Pukhov ao comentar o início da guerra à Folha em Moscou foi: "Isso é inédito para nós".

A ênfase no "para nós" era evidente. O Kremlin não fazia operação dessa complexidade desde o conflito mundial encerrado em 1945. Já para o Ocidente, a memória dos EUA contra as forças iraquianas no Kuwait em 1991 e o acerto de contas com Saddam Hussein em 2003, as "guerras da TV a cabo", era lugar-comum em termos militares.

Fumaça sobe do complexo presidencial em Bagdá após ataque americano na fase 'choque e pavor' da Guerra do Iraque
Fumaça sobe do complexo presidencial em Bagdá após ataque americano na fase 'choque e pavor' da Guerra do Iraque - Goran Tomasevic - 21.mar.2003/Reuters

Mas foi o desenrolar da campanha russa o evento que evoca mais os reflexos da Guerra do Iraque, que completa 20 anos nesta semana.

No marco zero da invasão, Putin emulou o "choque e pavor" usado por George W. Bush antes de enviar forças para tomar Bagdá. Ou seja: ataque maciço com mísseis variados, modelos de cruzeiro de alta precisão Kalibr, antirradar Kripton, balísticos Iskander-M.

Atordoado o inimigo, começaram os problemas. Em 2003, o sucesso da operação militar inicial, depois transformada numa ocupação fracassada que legou ao mundo um Iraque disfuncional, deveu-se ao correto emprego das chamadas forças combinadas.

Nada novo: é um conceito que remonta à Pérsia e à Grécia clássica, com ramos diferentes de exércitos trabalhando juntos. Sua versão moderna emergiu no século 17, com a combinação de cavalaria, infantaria e artilharia em assaltos, sendo encarnada agora com o variado leque bélico à disposição de Forças Armadas.

Na invasão ilegal do Iraque, o "choque e pavor" foi seguido de avanços de colunas blindadas e corpos de infantaria com apoio aéreo. Com a resistência iraquiana desorganizada, em meros 21 dias Bagdá caiu.

O governo de Joe Biden, na figura do chefe do Estado-Maior Conjunto, Mark Milley, havia previsto que o mesmo ocorreria com Kiev em 72 horas. Quase um ano e um mês depois, isso se provou falso, talvez porque Putin copiou apenas as notas iniciais de Bush, sem dar seguimento à partitura.

Faltou às forças russas o encaixe de peças das forças combinadas. Colunas blindadas não tiveram apoio de infantaria, e, provavelmente por temer baixas pesadas, a aviação tática permaneceu largamente em espaço aéreo russo e belarusso, sem dar apoio aproximado aos grupos que tentaram cercar a capital ucraniana.

Para piorar, havia a insuficiência crônica de tropas, que o Kremlin tenta remediar com os mais de 300 mil reservistas convocados para a guerra.

O fracasso inicial deixou lições, incorporadas com a mudança tática da guerra, focada nas áreas com domínio russo no leste e sul da Ucrânia. E Kiev, por sua vez, também sofreu pela falta de elementos para exercer ataques de forças combinadas —oficiais do país estão inclusive sendo treinados em táticas do tipo em países da Otan.

"Volodimir Zelenski e seus líderes militares pedem blindados pesados desde o começo da guerra. Mas é preciso muito mais para criar poder de combate do que possuir um certo tipo e quantidade de blindados modernos. É muito difícil para a Ucrânia produzir força mecanizada suficiente para expulsar os russos", escreveu Daniel Davies no site militar 1945.

Ele tem o proverbial lugar de fala: é um tenente-coronel da reserva americana, especialista em tanques e participante do maior embate blindado que os EUA travaram desde a Segunda Guerra Mundial, a Batalha de 73 Easting, no Iraque em 1991. Davies ressalta a importância do tanque, criticado apressadamente em favor de tecnologias novas como a dos drones, para o sustento de ofensivas.

Sua argumentação repete fala recente de Milley segundo a qual o entrincheiramento das forças russas dificulta qualquer sucesso ucraniano. Mas os tanques, de todo modo, agora estão prometidos para Kiev, assim como os primeiros caças, em uma escalada imprevisível há um ano.

Com blindados americanos Bradley e o eventual reforço com tanques alemães Leopard-2, mais suporte aéreo por ora restrito aos poucos e velhos MiG-29 anunciados por Polônia e Eslováquia, teoricamente são criadas condições para exercitar uma ação de forças combinadas —ao menos de forma localizada.

Outros paralelos correm claros entre as guerras no campo político. "A invasão de 2003 mostrou-se resultado de uma grande construção ficcional de que o Iraque dispunha de armas de destruição em massa", afirmou Vinicius Mariano de Carvalho, vice-reitor da Faculdade de Ciências Políticas e professor do Departamento de Estudos da Guerra do King's College, de Londres.

"A invasão da Ucrânia pela Rússia, repete, mutatis mutandis [com as devidas adaptações], a invasão do Iraque. Resta-nos perguntar se a história aqui se repetirá como tragédia ou farsa", completou. Após 2003, afinal, apesar da vitória militar inicial, uma sangrenta resistência manteve os EUA pressionados a ponto de, apesar de terem se retirado oficialmente em 2011, ainda manterem forças ativas no Iraque.

Essa cristalização do conflito é um dos pesadelos para Putin, cioso do peso que a ocupação de uma década do Afeganistão teve para o ocaso da União Soviética, "o maior desastre geopolítico do século 20", em suas próprias palavras.

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