Descrição de chapéu Guerra do Iraque

Premissas falsas para invasão do Iraque custaram credibilidade dos EUA

Americanos gestaram guerra por mais de um ano com acusações infundadas de desenvolvimento de armas de destruição em massa

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Washington

O papa entrou em cena. "Não à guerra", disse João Paulo 2º em janeiro de 2003 pedindo "o nobre exercício da diplomacia". O então presidente da França, Jacques Chirac, disse que era injustificada. Vladimir Putin, que já estava no poder, também condenou. Lula, em seu primeiro mandato na Presidência, afirmou que não tinha legitimidade internacional. Até José Sarney subiu a tribuna do Senado para criticar o "ditador mundial" que se achava "juiz do que é certo e errado".

Nada disso adiantou e, em 19 de março de 2003, o então presidente dos EUA, George W. Bush, foi à TV anunciar que naquele instante começavam "operações militares para desarmar o Iraque, libertar seu povo e defender o mundo de um grave perigo", após Saddam Hussein recusar um ultimato de deixar o país em 48 horas.

Foto de Juca Varella, enviado pela Folha à Guerra do Iraque, mostra um dos primeiros mísseis que caíram sobre a capital iraquiana em 20 de março de 2003 - Juca Varella - 20.mar.2003/Folhapress

Assim tinha início há 20 anos a Guerra do Iraque, em um dos episódios mais controversos da política externa americana, que tem repercussões na região até hoje e que diminuiu a confiança global em uma ordem mundial dominada pelos americanos, avaliam especialistas.

A invasão se deu sob dois argumentos principais, que depois se mostraram falsos: que o regime de Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa (o que já era contestado por observadores internacionais) e que tinha ligações próximas com a Al-Qaeda, responsável pelo ataque de 11 de setembro de 2001.

Mais de 4.000 soldados americanos morreram no país. Do lado iraquiano nunca se conseguiu contar com exatidão, e estimativas falam em "centenas de milhares" de mortos, com cifras que passam das 500 mil vítimas.

Nos centros de pesquisa em política externa da capital americana, painéis para discutir os 20 anos da guerra se tornaram grandes sessões de autocrítica nos últimos dias. "As palavras ‘promoção da democracia’ aos ouvidos de muita gente ao redor do mundo significa que vamos invadir vocês", disse o professor de Stanford Francis Fukuyama em um evento do Fundo Carnegie para a Paz Internacional.

Matthew Duss, pesquisador no Fundo Carnegie, resume: "A decisão de invadir o Iraque em 2003 causou vexame em aliados, trouxe condenação de muitas partes do mundo e provocou alguns dos maiores protestos da história. Ainda assim, o governo Bush, apoiado pela maioria dos dois partidos no Congresso e pela opinião pública foi adiante com o que se provou um histórico e estratégico erro crasso."

Em ato falho no ano passado, Bush sintetizou sem querer as críticas em evento no Texas, quando confundiu Iraque com Ucrânia. Ao falar da guerra em curso no Leste Europeu, planejava citar Putin quando criticou "a decisão de um só homem lançar uma completa, injustificada e brutal invasão do Iraque", antes de se corrigir: "quero dizer, da Ucrânia."

Deveria ser uma operação de "choque e pavor" ("shock and awe", em inglês), uma estratégia de domínio rápido que, tamanha a grande capacidade militar e rapidez na mobilização, paralisa o inimigo. O primeiro objetivo, tirar Saddam do poder, foi atingido rapidamente e, em 1º de maio, Bush disse que a missão estava completa.

Mas a insurgência iraquiana resistiu por anos, e os EUA chegaram a ter mais de 170 mil soldados no país em 2007, quando começou a retirada das tropas, que se concluiu em 2011.

Com o surgimento do Estado Islâmico, apontado como uma consequência da invasão americana, Barack Obama enviou novos soldados em 2014, e hoje ainda há cerca de 2.500 militares no país. Até aqui, o custo do conflito calculado pela Universidade de Brown é de US$ 1,79 trilhão —se considerar os gastos futuros com assistência para veteranos da guerra, a estimativa é que chegue a US$ 2,89 trilhões até 2050.

Os EUA já estavam de olho no Iraque havia tempo, desde que Saddam se tornou inimigo dos americanos na Guerra do Golfo, entre 1990 e 1991. Em 1998 Bill Clinton assinou a Lei da Libertação do Iraque, que determinava que deveria "ser a política dos Estados Unidos apoiar os esforços para remover o regime liderado por Saddam Hussein do poder no Iraque e promover o surgimento de um governo democrático".

Horas após os atentados de 11 de setembro de 2001, o então secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, já despachava bilhetes a auxiliares pedindo informações se seria "bom atacar SH [Saddam Hussein] ao mesmo tempo —não somente OBL [Osama Bin Laden]", segundo notas que vieram a público anos depois.

Foi um trabalho extenso de comunicação para convencer o público —eleitores, Congresso e a comunidade internacional— de que a invasão era necessária.

Em discurso ao Congresso em janeiro de 2002, quatro meses após os atentados e mais de um ano antes da guerra, Bush afirmou que o Iraque constituía "um eixo do mal, ameaçando a paz do mundo" com o "desenvolvimento de antrax, agente nervoso e armas nucleares por mais de uma década." Nada disso foi encontrado na invasão, e investigações posteriores, como no Senado dos EUA em 2004 e do governo britânico em 2016 mostraram que as alegações eram baseadas em falhas de inteligência.

Investigação de 2008 da ONG de jornalismo investigativo Center for Public Integrity encontrou 935 alegações falsas feitas por Bush, pelo vice-presidente, Dick Cheney, pela conselheira de segurança nacional, Condoleezza Rice, e por Rumsfeld, entre outras autoridades, entre 2001 e 2003.

Bush sozinho fez 232 alegações falsas sobre armas de destruição em massa e 28 sobre ligações do Iraque com a Al Qaeda. "As declarações fizeram parte de uma campanha orquestrada que efetivamente galvanizou a opinião pública e, no processo, levou a nação à guerra sob pretextos decididamente falsos", segundo o grupo.

Ainda há quem considere a decisão de invadir o país acertada, como John Bolton, conselheiro de Segurança Nacional no governo Trump e à época no Departamento de Estado. Em entrevista recente ao árabe The National, disse que "a invasão atingiu seu objetivo" de tirar Saddam do poder porque "não há dúvida que voltaria e buscar o desenvolvimento de armas nucleares".

Hoje o Congresso dos EUA se move para cassar autorização dada em 2002 para a invasão, e o Senado aprovou em votação preliminar na última quinta (16). "Quando autorizações passam para um propósito e não são revogadas, você tem presidentes que as usam de forma bastante criativa", diz o senador democrata Tim Kaine, que lidera o projeto contra a autorização.

Foi sob essa autorização, por exemplo, que o governo Donald Trump justificou a operação que matou em Bagdá o general do Irã Qassim Suleimani, principal comandante militar do país, e outras nove pessoas em um ataque a drone em 2020, sem consultar o Congresso.

Kaine diz que desde Bush, Obama, Trump e Biden fizeram operações sob essa autorização, "sem definição clara temporal, de inimigo e território, para atingir grupos terroristas, mas muitas vezes grupos terroristas que nem existiam no ataque de 11 de setembro", disse ele em evento do think tank Cato Institute.

Além dos protestos em massa na época da invasão, os questionamentos foram crescendo ao longo dos anos, com violações de direitos humanos que foram descobertas depois, como a revelação de torturas cometidas por soldados americanos contra iraquianos na prisão de Abu Ghraib.

Em 2004, o então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, afirmou que a invasão havia sido ilegal por violar a Carta das Nações Unidas.

Para Doug Bandow, pesquisador do Cato Institute e assessor de Ronald Reagan na Presidência, um dos impactos do que chama de "talvez a pior decisão de política externa que um presidente tomou nos últimos 60 anos" foi a erosão da credibilidade dos EUA, com reflexos em outro conflito em curso hoje.

"É uma das razões pelas quais o Sul Global é cético sobre as alegações do Ocidente na Ucrânia. Eles viram a intervenção militar ocidental e como o Ocidente trata o país deles e o povo deles em contraste com o que acham que é o centro do universo, a Europa e os europeus brancos."

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