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Honduras tenta copiar de El Salvador modelo de guerra contra gangues

Estratégia controversa expõe contradições de Xiomara Castro, 1ª mulher a presidir o país, e ganha força na América Central

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São Paulo

Há quatro meses, o vice-presidente de El Salvador disse à Folha que, se dependesse de seu governo, o país da América Central viraria um exportador da controversa estratégia de combate às gangues por meio de estados de exceção. O prenúncio parece estar se concretizando.

Félix Ulloa usou como exemplo o Haiti, que vive uma espiral de crise humanitária. Mas o principal exemplo vem da vizinha Honduras, onde há quase cinco meses parte das garantias constitucionais está suspensa sob a justificativa do combate à violência.

A presidente de Honduras, Xiomara Castro, discursa durante evento das Forças Armadas na capital Tegucigalpa
A presidente de Honduras, Xiomara Castro, discursa durante evento das Forças Armadas na capital Tegucigalpa - Orlando Sierra - 25.fev.22/AFP

Por decisão do governo de Xiomara Castro, a primeira mulher a presidir Honduras, o país vive sob estado de exceção desde 6 de dezembro. Direitos constitucionais estão suspensos em 235 dos 298 municípios do país, incluindo a capital Tegucigalpa —em El Salvador, medida semelhante em todo o território nacional passa de um ano.

Ao lado da Guatemala, os dois países compõem o Triângulo Norte, uma das regiões mais violentas do mundo. Essa parte da América Central se converteu, aos olhos do narcotráfico internacional, em um corredor de drogas para os EUA, com o transporte feito por grupos criminosos chamados de maras ou pandilhas, que controlam a vida da população pobre de suas respectivas nações.

Diferentes governos aplicaram versões da política de linha dura nas últimas décadas, mas o uso do estado de exceção nessa escala é inédito. O instrumento costuma ser usado em situações pontuais e por um período de tempo determinado —após um terremoto, por exemplo—, não em problemas de larga escala e sem data para acabar.

Sob o pretexto do combate às maras, porém, Honduras restringiu a liberdade de movimento e reunião e deu carta branca para a polícia entrar nas casas e capturar pessoas sem mandado de prisão.

Com essas regras, a repressão tem o potencial de atingir níveis que não seriam possíveis com o pleno funcionamento das instituições —levando a resultados como o de El Salvador, onde a taxa de homicídios caiu 85% em quatro anos à custa de encarceramento em massa, violações de direitos humanos e derrocada democrática.

"O problema da violência na América Central é produto de causas estruturais que não foram resolvidas e se agravam pelos níveis de corrupção que existem nas instituições públicas", afirma Jose Miguel Cruz, cientista político na Universidade Internacional da Flórida.

Ao limitar a possibilidade de defesa, o estado de exceção dá poder quase ilimitado ao Estado para decidir sobre a vida das pessoas, diz o pesquisador, além de aumentar a presença das forças militares. Em Honduras, as Forças Armadas foram as responsáveis por cinco golpes de Estado no século 20.

A influência do narcotráfico na polícia e na política —fenômeno que faz o país ser considerado um narcoestado por especialistas— torna a estratégia problemática. "Não é nenhum segredo que há pessoas dentro do atual governo que seguem vinculadas com o narcotráfico", afirma Cruz. "A corrupção enraizada é parte do problema."

Apesar da tentativa de copiar o modelo salvadorenho, Honduras difere do vizinho em relação à conjuntura política. Com uma das taxas de popularidade mais altas do mundo, o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, neutraliza, um a um, os contrapesos do Estado.

Começou com a Assembleia Legislativa, onde seu partido conquistou 56 das 84 cadeiras. Passou pelo Judiciário, quando destituiu juízes da Corte Constitucional, e terminou com a imprensa —neste mês, o El Faro, o maior jornal de El Salvador, anunciou que mudaria toda sua estrutura administrativa e jurídica para a Costa Rica.

"El Salvador tem feito um grande esforço para controlar as instituições. Em Honduras, isso é um pouco mais complicado porque a oposição ainda é forte", afirma a costa-riquenha Carolina Ovares-Sánchez, doutoranda na Universidade Nacional de San Martín, em Buenos Aires.

Xiomara Castro não tem maioria na Casa Legislativa. Em 2021, 50 de seus correligionários foram eleitos para o Congresso Nacional, que tem 128 assentos. Ela lida com dissidências dentro do próprio partido —um imbróglio que seu marido tenta resolver. Manuel Zelaya, ex-presidente hondurenho deposto no primeiro golpe de Estado na América Central desde o fim da Guerra Fria, em 2009, é muito influente.

"Houve um giro em suas promessas de campanha", afirma Ovares-Sánchez. A presidente de esquerda prometia recuar da política de seu antecessor, Juan Orlando Hernández, e desmilitarizar as forças de segurança. Uma vez no poder, ela manteve a Polícia Militar de Ordem Pública criada por Hernández e aparentemente abandonou a ideia de uma força de segurança com viés comunitário.

A análise é compartilhada pela jornalista hondurenha Jennifer Ávila. "Seguimos como um dos países mais violentos do mundo. Já há denúncias de direitos humanos. O que temos visto segue sendo a estigmatização dos bairros marginalizados."

Fundadora do nativo digital Contracorriente, Ávila se tornou em março a primeira hondurenha premiada na categoria de excelência do Prêmio Gabo, a principal premiação de jornalismo da América Latina. A láurea reconheceu a qualidade do trabalho de seu veículo, mas também o esforço de fazer jornalismo em um país com corrupção endêmica e pouco histórico de imprensa independente.

No horizonte, há ainda a possibilidade de a controvérsia estratégia de El Salvador e Honduras se espraiar. Ainda que o presidente da Guatemala, Alejandro Giammattei —que empreende uma cruzada contra a imprensa e o Judiciário— não dê sinais de que aplicaria medida semelhante, a oposição o faz.

Zury Ríos, uma das líderes nas pesquisas de opinião para as eleições de junho, já mostrou que simpatiza com a estratégia. Filha do ex-ditador militar Efraín Ríos Montt, condenado por genocídio em uma sentença depois anulada, ela afirmou que, se eleita, vai se inspirar no modelo salvadorenho, "que alcançou um impacto contundente".

"Não é uma questão ideológica de esquerda e direita, ao menos da América Central. É mais uma questão de preservar os autoritarismos, de controlar as instituições, as Forças Armadas. É uma receita que funciona bem aos ditadores", afirma Jennifer Ávila.

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