Descrição de chapéu América Latina

Não são nem 10%, diz vice de El Salvador sobre mortos e desaparecidos em combate a gangues

Félix Ulloa defende exportação de políticas do governo de Nayib Bukele contra as chamadas 'maras' a países como o Haiti

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São Paulo

Em dois meses, El Salvador completará um ano sob o regime de exceção decretado pelo governo do populista Nayib Bukele. E não há prazo para encerrá-lo, segundo o vice-presidente Félix Ulloa, 71.

Com a justificativa de combater as chamadas "pandillas" ou "maras", gangues responsáveis por altos índices de violência, o país centro-americano tem estabelecido cercos militares e realizado, de forma maciça, prisões de supostos membros das "pandillas" —60 mil até aqui.

Organizações de direitos humanos apontam que a situação, junto à postura de Bukele e de seus partidários de interferir no Judiciário e de manter um discurso agressivo contra a imprensa, fez El Salvador migrar para uma autocracia. Ulloa, por sua vez, diz que a democracia por lá nunca esteve tão vibrante.

Soldados em operação contra gangues na região de Tutunichapa, em San Salvador - Marvin Recinos - 24.dez.22/AFP

Formado em direito, ele lutou contra a ditadura que vigorou de 1931 a 1979 no país. Seu pai, de quem herdou o nome, foi assassinado pelo regime em 1980. Bukele é 30 anos mais novo que seu vice.

Ulloa reconhece que a guerra contra as gangues protagonizou violações de direitos humanos. Mas afirma que essa não é uma política de Estado —seria, diz ele, uma espécie de dano colateral. "Nenhuma obra humana é perfeita, e investigações estão em curso", afirma o salvadorenho.

Ele falou à Folha por videochamada na primeira semana de janeiro, quando esteve no Brasil para a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e pouco antes de se reunir com o seu homólogo brasileiro, Geraldo Alckmin (PSB).

O governo argumenta que o número de homicídios caiu no país, e Bukele goza de índices de aprovação superiores a 80%. Contrariando a Constituição, ele já disse que deve disputar a reeleição em 2024.

Uma das principais estratégias do governo é impor cercos militares para combater a criminalidade. A ampla participação das Forças Armadas não viola a democracia? Não é tão ampla, e foram sete ou oito prorrogações [do estado de exceção]. Quando estudava direito, na ditadura dos anos 1980, havia um estado de exceção por vários anos.

Mas era uma ditadura. Hoje, em teoria, é uma democracia. Mas qual era o objetivo do estado de exceção? No de agora, as únicas garantias afetadas são para assegurar que os presos não sejam liberados por vácuos legais. Outra coisa era o direito à privacidade, para que possa haver escutas, forma de garantir a segurança. Muitos municípios estão pedindo cercos [militares]. É a efetividade da metodologia da guerra que estamos travando contra as "pandillas" para a proteção do povo.

Há uma data para terminar? Não há data.

Se não há prazo, isso não se converte em uma autocracia? Um regime autoritário usa a força coercitiva do Estado para se manter no poder. Quando se usa o poder coercitivo para proteger a população, a democracia se fortalece. Antes [de Bukele], tínhamos uma democracia formal, mas o povo era oprimido. As "pandillas" se fortaleciam porque tinham o respaldo dos partidos no poder.

Organizações de direitos humanos reconhecidas mundialmente dizem que o regime de exceção permitiu graves violações, como desaparecimentos forçados, torturas e maus-tratos nas prisões. Vale tudo na guerra contra as "pandillas"? Claro que não. O gabinete de segurança explicou os protocolos, de respeito irrestrito aos direitos humanos. Não houve derramamento de sangue.

Reconhece que há violações de direitos humanos? Claro, mas não é uma política de Estado. São atos isolados de pessoas que estão sendo investigadas, processadas e julgadas. Não se pode garantir que em uma operação dessa magnitude não vai haver erros. Em uma análise de proporcionalidade, poderíamos dizer que há 60 mil capturados e 3.000 mortos ou desaparecidos. Não são nem 10%.

Três mil são muitos. É muito caso olhemos isoladamente. São 57 mil delinquentes retirados das ruas. Muitas das denúncias são de familiares dos "pandilleros". Os juízes examinam os casos, e centenas de pessoas já saíram da prisão porque ficou demonstrado que eles foram capturados de forma injusta. Nenhuma obra humana é perfeita. As ONGs que denunciam são porta-vozes de um discurso antigoverno.

Se não fizéssemos essa guerra, nunca resolveríamos o problema. Esse pode ser um modelo para outros países, como o Haiti. Há vontade de compartilhar essas boas experiências com outros Estados.

Mais de 30 jornalistas e ativistas dizem que foram espionados com o software Pegasus a mando do governo. Também hackearam a conta do presidente e da vice da Assembleia Legislativa. Bukele não comprou o programa. Muitos dos jornalistas serviam de veículo para divulgar mensagens das "maras". Não há um só meio de comunicação censurado ou fechado, ainda que sejam críticos todos os dias.

Há leis para combater certos conteúdos. Publicar sobre as "maras" não está proibido. O que é proibido é transmitir mensagens delas.

Isso não viola a liberdade de imprensa? O jornalista não pode ser instrumento para cometer um delito.

É instrumento da informação. Há limites. Em El Salvador, um deles é não transmitir mensagens.

O bitcoin é vendido pelo governo como uma vitória, mas ainda há resistência da população. Estão frustrados com os resultados? Estou na expectativa. Não posso dizer que foi um êxito, porque a população ainda não se familiarizou, mas também não é um fracasso, porque não é uma questão de comprar e vender ações, mas uma política de reservas. O futuro é a era digital, as moedas serão digitais.

Quais as expectativas com o Brasil, com Lula de volta à Presidência? Compartilhamos a visão de apoiar o multilateralismo e a vocação por paz, desenvolvimento e solidariedade. Teremos excelentes relações.

Ao longo dos últimos quatro anos, com Jair Bolsonaro (PL), como foi a relação? Há fatos que são públicos, como a ausência da administração anterior em mecanismos regionais de cooperação. El Salvador é pioneiro na América Central na luta pela integração regional, e gostaríamos de contar com o Brasil.

uma espécie de giro à esquerda na América Latina. Isso contribui para o isolamento de El Salvador? Queremos sair de etiquetas. São anacronismos que deveriam ficar na Guerra Fria. Hoje são outras as agendas que nos unem, vinculadas a temas como ambiente, igualdade de gênero e oportunidades para setores invisibilizados. Quando começou na região o que um amigo chama de primavera democrática, com o primeiro governo do presidente [Hugo] Chávez [na Venezuela], geraram-se expectativas baseadas em caracterizações ideológicas. Logo vieram os desencantos, golpes de Estado.

Militei na esquerda, tomamos as armas para combater a ditadura, mas isso é o nosso passado. Neste mundo, em que tenho um presidente millennial [Bukele tem 41 anos], não podemos querer impor esses esquemas às novas gerações. E senti no discurso de Lula um pensamento atualizado, distante de velhos clichês.

O senhor já falou sobre os processos judiciais contra líderes como Lula. O que pensa desses embates que governos da região têm com o sistema judicial, como houve em El Salvador? Isso não viola a democracia? Acho que pode fortalecê-la. Muitos juízes se converteram em ativistas políticos. Na América Latina, como no caso contra Lula, vimos a forma parcializada com que a Justiça atuou. Em El Salvador, foi a mesma situação. E o Congresso teve de atuar, não o presidente.

Mas o Congresso está com Bukele, o partido dele tem maioria. O Congresso foi eleito pelo povo. Se o povo deu essa supermaioria ao partido do presidente é porque queria que as políticas dele fossem aplicadas. Foi um ato administrativo, sem punições. Quando adotamos o esquema da separação de Poderes, é preciso garantir que os órgãos operem de maneira independente. Quando há uma linha partidária, geram-se essas disfuncionalidades no Estado de Direito.

El Salvador é origem de um dos principais fluxos migratórios para os EUA. O que estão fazendo para mudar isso? A migração forçada não é um ato de pessoas que querem partir. A primeira causa é precariedade nas comunidades, falta de emprego e trabalho. A segunda, a violência, que já combatemos. Precisamos gerar condições de desenvolvimento, em especial nas comunidades rurais.

Felix Ulloa, vice-presidente de El Salvador, durante evento em Paris - Ludovic Marin - 11.nov.22/AFP

Raio-x | Félix Ulloa, 71

Vice-presidente de El Salvador desde 2019, é advogado. Estudou na França e nos EUA e militou em movimentos estudantis e sindicais na época da ditadura.

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