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Nayib Bukele usa redução de homicídios como trunfo diplomático em El Salvador

Líder se projeta na América Central com política linha dura em relação à criminalidade e derrocada da democracia

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São Paulo

Após três anos de popularidade recorde, o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, está pronto para conquistar novos públicos.

O líder que autocratiza a pequena nação centro-americana de 6,3 milhões de habitantes tem um trunfo importante em mãos: a queda da taxa de homicídios no país, outrora um dos mais violentos do mundo.

A proeza fez El Salvador, conhecido pela brutalidade de gangues —as maras, ou pandillas—, ser visto como modelo no combate à violência, a despeito das denúncias de prisões de inocentes, das violações de direitos humanos e dos custos para a democracia, em derrocada.

Grafite de Bukele em Soyapango, área metropolitana de San Salvador - Jose Cabezas - 25.jan.23/Reuters

O relatório mais recente do instituto sueco V-Dem, uma referência na análise de regimes políticos, mostra que El Salvador foi um dos países que mais sofreu retrocessos democráticos em 2022, quando caiu 13 posições e ficou em 132º em um raking que avalia a qualidade da democracia em 179 países. O Brasil é o 58º. Hoje, a organização considera a nação de Bukele uma autocracia eleitoral —há eleições multipartidárias, mas outros pilares democráticos estão ausentes.

Bukele, que já se autodenominou o "ditador mais cool" do mundo, faz defesas ferrenhas de seu governo —inclusive quando as críticas vêm de seus pares, como o presidente da Colômbia, Gustavo Petro.

Em recente evento, o colombiano chamou as prisões salvadorenhas de campos de concentração. "O presidente de El Salvador reduziu a taxa de homicídios a partir, diz ele, da repressão às gangues que hoje estão naquelas prisões, na minha opinião, pavorosas."

Pelo Twitter, o salvadorenho compartilhou a fala de Petro e respondeu: "Os resultados pesam mais do que a retórica".

A discussão foi suficiente para a órfã direita colombiana abraçar Bukele. Dias depois, ele estava na capa da revista colombiana Semana: "O milagre de Nayib Bukele: os impactantes resultados do presidente de El Salvador que se tornou o maior opositor de Gustavo Petro".

"A fórmula de Bukele talvez não se sustente em sociedades onde há mais democracia e análise de políticas públicas, mas, em alguns lugares, o desespero por causa da criminalidade empurra a própria população a pedir aos governantes que tomem esse tipo de medida", afirma Abraham Abrego, diretor da ONG salvadorenha Cristosal.

A admiração pelo líder é notável em países como os descritos pelo advogado, como os vizinhos Guatemala e Honduras, mas também começa a respingar em nações da região conhecidas pela estabilidade e segurança, como a Costa Rica —onde parentes de Bukele tentaram fundar um partido no ano passado, segundo a imprensa local.

"É uma política de linha dura mais grave em relação às anteriores, porque é muito arbitrária e pouco concentrada em eliminar o crime organizado ou as estruturas de pandillas. São detenções massivas que afetam boa parte da população", diz Abrego.

Em 2018, ano anterior à eleição de Bukele, El Salvador tinha uma taxa de 52 homicídios a cada 100 mil habitantes —número que colocava o país na liderança do ranking na América Central, região conhecida por ser uma das mais violentas do mundo. Já no ano passado, o índice foi de oito em 100 mil, uma queda de 85%.

Mas a diminuição acompanha um aumento vertiginoso da população presa, o que fez o país alcançar a maior taxa de encarceramento do mundo no ano passado —605 a cada 100 mil habitantes, segundo o World Prison Brief, ou 2,2% da população salvadorenha maior de 18 anos, de acordo com o jornal La Prensa Gráfica.

A situação se agravou há um ano, quando El Salvador adotou um regime de exceção que vigora até hoje. À época, Bukele se vangloriava de seguidos dias sem registros de morte, até que a calmaria foi interrompida pelo fim de semana mais letal no país desde 2001. Foram 87 mortes em 72 horas —62 em um só dia.

A mudança brusca sugeria a existência de um pacto com grupos criminosos, uma teoria negada pelo governo e corroborada meses depois por áudios revelados pelo site El Faro, nos quais há evidências de negociações entre uma autoridade e criminosos da gangue MS-13.

O estado de exceção, segundo especialistas, permitiu que o governo radicalizasse a repressão contra as pandillas de uma forma que não seria possível em um sistema com freios e contrapesos robustos, além de impedir que o saldo das medidas seja divulgado de forma transparente.

Publicitário com experiência em campanhas políticas antes mesmo de se tornar um candidato, Bukele dá entrevistas a youtubers de outros países, é ativo nas redes sociais e aposta em vídeos cinematográficos para mostrar seus feitos.

Desde que inaugurou a maior prisão da América Latina, no início de fevereiro, abastece suas redes com cenas de prisioneiros sendo transportados, em fila, com as mãos e os pés algemados. A abertura do presídio foi divulgada em cadeia nacional de rádio e TV e mais do que dobrou o número de vagas prisionais no país, que até então contava com 20 prisões e capacidade para receber 30 mil pessoas.

"Bukele apareceu como um antídoto a tudo que os salvadorenhos não gostavam", diz Manuel Meléndez-Sánchez, cientista político e doutorando em Harvard. "Mas as condições não mudaram. Ainda que assumamos que as organizações criminosas foram derrotadas, as oportunidades para que apareça um novo grupo seguem aí. Estamos no segundo ou terceiro capítulo de uma história muito grande."

Bukele venceu as eleições de 2019 com 53,1% dos votos, desbancando os dois partidos que polarizavam a política desde o Acordo de Paz de 1992, que colocou fim a uma guerra civil de 12 anos: Arena, à direita, e FMLN, à esquerda. As negociações para finalizar o conflito já foram chamadas pelo líder de "farsa" e "acordo entre corruptos".

"A classe política tradicional, envelhecida em sua mentalidade, não soube fazer uma leitura oportuna e estratégica das mudanças tecnológicas e demográficas que estão ocorrendo em nosso país", afirma Danilo Miranda, cientista político e professor da UCA (Universidade Centro-americana José Simeón Cañas).

Bukele parece ter conseguido. Em sua corrida por projeção, ele tem revivido em discursos a expectativa de reaproximar os países da América Central, uma ideia que gira em torno da memória do líder Francisco Morazán, político e herói militar do século 19.

Canais do Youtube chegaram a, como uma brincadeira, projetar como seria o novo país, que uniria as nações centro-americanas sob a tutela, claro, de Bukele. Até o nível da hipotética seleção de futebol foi discutido no projeto de reunificação centro-americana.

"Ele quer promover o seu projeto político a nível centro-americano, mas não sob o esquema de integração formal que conhecemos, porque isso implicaria chegar a acordos entre chefes de Estado", afirma Carlos Monterrosa, professor da UCA. "Sua ideia é chegar ao imaginário dos cidadãos, mas não por meio dos canais institucionais."

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