Partidos compram votos e oferecem transporte e cerveja a indígenas do Paraguai

Pagamentos descritos como assistência financeira maquiam prática ilegal em regiões menos favorecidas

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Jack Nicas
Pozo Colorado (Paraguai) | The New York Times

A comunidade indígena Espinillo fica a 21 km do centro eleitoral mais próximo, e ninguém lá possui carro.

Duas semanas atrás, na véspera da eleição paraguaia, Miguel Paredes, um motorista de ambulância aposentado que se converteu em político local, colocou as famílias indígenas em um ônibus e as levou até a beira da estrada, a pouca distância a pé do local de voto. "Queremos cuidar delas", disse ele, enquanto montava guarda com seis rapazes que descreveu como colegas.

Votação em colégio eleitoral de Pozo Colorado, no Paraguai
Votação em colégio eleitoral de Pozo Colorado, no Paraguai - Maria Magdalena Arrelaga - 30.abr.23/The New York Times

Ao cair da noite, o jornal The New York Times se deparou com um tipo peculiar de compra de votos, desenvolvido ao longo de décadas, acontecendo em plena vista de todos.

Paredes, 65, e seus colegas reuniram alguns dos indígenas e anotaram seus números de identificação. Disseram que eles deviam votar no Partido Colorado, de direita –a força política dominante no Paraguai—, e se assegurar de que as outras pessoas da comunidade fizessem o mesmo. Os rapazes então mostraram no telefone uma simulação das urnas, orientando-os a votar em candidatos colorados.

Os jornalistas podiam ouvir o que estava sendo dito. Milner Ruffinelli, um dos rapazes, passou a falar na língua indígena, guarani. "O dinheiro prometido a vocês está ali também, e o senhor Miguel Paredes vai ver como fazer chegar a vocês", disse. "Não podemos lhes entregar o dinheiro aqui. Vocês sabem por quê."

A democracia está sendo desafiada em todo o mundo. Líderes de alguns países –incluindo Estados Unidos, Turquia, México e Brasil— atacaram instituições democráticas. Em outros países, os líderes derrubaram o processo democrático completamente –é o caso de Rússia, Venezuela e Nicarágua.

Ao mesmo tempo, a desinformação alimenta alegações mirabolantes sobre máquinas de voto hackeadas, defuntos votando e cédulas de voto roubadas, prejudicando a confiança da população nas eleições.

Em muitos países, um perigo menos visível, mas igualmente presente, continua a prejudicar as eleições livres e justas: a compra de votos. Partidos mexicanos têm distribuído cartões de presentes, mercadorias e até mesmo máquinas de lavar roupa. Observadores disseram que a eleição do ano passado nas Filipinas foi prejudicada pela "compra deslavada de votos". Um político nigeriano foi flagrado em fevereiro com US$ 500 mil (R$ 2,4 milhões) e uma lista de possíveis receptores do dinheiro, no dia antes das eleições.

No Paraguai, país de 7,4 milhões de habitantes, o New York Times testemunhou no mês passado uma prática diferente, mas que já é de praxe: agentes políticos reuniram indígenas no norte isolado do país e tentaram controlar ou comprar seus votos.

Em um caso, um candidato a governador do Partido Colorado entregou pessoalmente 200 mil guaranis (R$ 136,5) por pessoa a mais de cem eleitores indígenas diante de um local de votação na cidade ribeirinha de Fuerte Olimpo. A informação é de cinco indígenas que receberam o dinheiro. Para os paraguaios mais pobres, esse valor equivale a várias semanas de seus rendimentos.

Nestor Rodríguez é o chefe da comunidade indígena Tomáraho, que recebeu o dinheiro. Ele diz que essa é uma prática habitual. "É só para comprarmos roupas e outras coisas para a família." Afirma ter votado no candidato colorado, Arturo Méndez, devido às promessas de empregos e construção de uma nova estrada.

Méndez venceu a eleição sem dificuldades. Entrevistado, admitiu ter dado dinheiro a indígenas, mas disse que o fez porque eles, "esquecidos pelo governo", precisavam de alimento e roupas. "Sim, nós os ajudamos. Mas não é para induzir o voto. Seria uma crueldade deixar de lhes dar uma assistência."

Pagar pessoas para votar em determinados candidatos é contra a lei paraguaia. Muitos dos pagamentos são descritos como assistência financeira –por exemplo, para pagar pelo almoço no dia da eleição.

Na província vizinha de Concepción, onde há 3.000 moradores indígenas, o candidato colorado a governador venceu por maioria de apenas 28 votos. O candidato derrotado está contestando os resultados, alegando irregularidades na contagem dos votos.

Membros da comunidade indígena Qom exigem ajuda do governo em protesto antes das eleições
Membros da comunidade indígena Qom exigem ajuda do governo em protesto antes das eleições - Maria Magdalena Arrellaga - 29.abr.23/The New York Times

A compra de votos pode determinar os resultados de eleições locais, mas raramente de eleições nacionais, afirmou Ryan Carlin, professor da Georgia State University que estudou a questão. Mas ela prejudica a democracia, "por contornar os mecanismos de representação e responsabilidade", disse. "Se o voto é visto como certo e é dado em troca de outra coisa, não há uma promessa política no final."

Muitos dos 120 mil indígenas paraguaios começaram a se integrar à sociedade moderna apenas algumas décadas atrás, e desde então partidos políticos, não só o Colorado, têm procurado controlar seu voto. Nos dias que antecedem as eleições nacionais, funcionários dos partidos percorrem o Chaco, região vasta e árida que cobre a metade noroeste do Paraguai e onde vive quase metade da população indígena.

Nas comunidades distantes, os funcionários colocam os indígenas em ônibus, os levam a locais fechados e lhes dão carne e cerveja até a hora da eleição. A informação é de observadores eleitorais, ativistas e indígenas que já passaram por isso. O objetivo é controlar a comunidade antes que o partido rival o faça.

Ônibus parados em frente a local de votação eleitoral em Pozo Colorado, no Paraguai
Ônibus parados em frente a local de votação eleitoral em Pozo Colorado, no Paraguai - Maria Magdalena Arrelaga - 30.abr.23/The New York Times

O candidato presidencial do Partido Colorado, Santiago Peña, ganhou por 460 mil votos –43% do total. Segundo estimativas, há menos de 80 mil indígenas adultos no país. Peña é o protegido político do ex-presidente Horácio Cartes, atual presidente dos colorados e que foi alvo de sanções do governo americano depois de uma investigação apontar que ele chegou ao poder à custa de propinas.

Os candidatos que ficaram em segundo e terceiro lugares sugeriram que a vitória de Peña foi conquistada graças a fraudes, mas não apresentaram provas claras disso. O terceiro colocado, cujos partidários ergueram barreiras em rodovias em protesto, foi preso, acusado de tentativa de obstrução eleitoral.

Em entrevista concedida antes da eleição, Peña disse que, se ocorresse compra de votos, isso não mudaria o resultado das eleições. "Não há muitas provas do argumento da compra de votos", disse. "Nunca foi possível comprovar um esquema de compra em grande escala. Se entre 2,5 milhões e 3 milhões de pessoas votam, quantos votos teríamos que comprar?"

José Arias, padre católico que tenta desencorajar indígenas a vender votos, em sua igreja em Remansito, no Paraguai
José Arias, padre católico que tenta desencorajar indígenas a vender votos, em sua igreja em Remansito, no Paraguai - Maria Magdalena Arrelaga - 29.abr.23/The New York Times

Mesmo assim, para os paraguaios a compra de votos é um segredo aberto. "É quase como se sem isso não seria uma eleição", disse o padre católico José Arias, que em seus sermões procura desencorajar os fiéis indígenas a vender o voto. "As pessoas concordam teoricamente", disse. "Mas há muitas que também concordam em receber" o suborno. Quando os votos foram contabilizados, o Partido Colorado mais uma vez dominou em todo o país, conservando a Presidência e reforçando seu controle do Congresso.

Todos os 19 candidatos indígenas a cargos nacionais ou estaduais perderam. Os paraguaios nunca elegeram alguém que se identifica como indígena para um cargo nacional.

Filas para votar em colégio eleitoral na cidade de Pozo Colorado, no Paraguai
Filas para votar em colégio eleitoral na cidade de Pozo Colorado, no Paraguai - Maria Magdalena Arrelaga - 30.abr.23/The New York Times

Tradução de Clara Allain

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