Descrição de chapéu África

Como taxista virou líder de seita que matou de fome mais de 100 no Quênia

Registros judiciais e entrevistas mostram como Paul Mackenzie planejou morte de membros do culto

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Duncan Miriri
Malindi (Quênia) | Reuters

Paul Mackenzie, líder de uma seita no Quênia que ganhou repercussão global, viveu com centenas de seguidores em abrigos improvisados de lona plástica e palha num acampamento florestal remoto que ele dividiu em áreas batizadas com nomes bíblicos, como Jerusalém e Judéia, segundo parentes de adeptos.

Ainda de acordo com familiares e um investigador sênior da polícia, Mackenzie disse a eles que o mundo como é conhecido hoje iria acabar em 15 de abril e Satanás governaria por mil anos. Ele então ordenou que os seguidores e seus filhos morressem de fome para assim encontrar Jesus no céu antes dessa data.

O autoproclamado pastor Paul Mackenzie, ao centro, acusado de incitar seguidores do culto que fundou a jejuar até a morte, em um tribunal em Malindi, no Quênia
O autoproclamado pastor Paul Mackenzie, ao centro, acusado de incitar seguidores do culto que fundou a jejuar até a morte, em um tribunal em Malindi, no Quênia - Simon Maina - 2.mai.23/AFP

"Ouvi a voz de Cristo me dizendo que o trabalho de pregar mensagens sobre o fim dos tempos chegou ao fim após nove anos", disse Mackenzie num vídeo no YouTube em março. "Segui a voz que me disse que eu havia terminado o trabalho." Semanas depois, o culto que fundou se tornou o foco de horror nacional com a descoberta, no final de abril, de mais de cem cadáveres —na maioria crianças— em covas coletivas na floresta de Shakahola, no sudeste do Quênia, lar de sua Igreja Internacional de Boas Novas.

Mackenzie, 50, está preso. Dois advogados que atuam em seu nome se recusaram a fazer comentários, assim como um porta-voz da polícia, que não respondeu imediatamente a um pedido da reportagem.

A partir de registros judiciais e entrevistas com dez pessoas com conhecimento do grupo, incluindo parentes de vítimas, médicos que trataram sobreviventes e o investigador da polícia envolvido no caso, foi possível montar um quadro que mostra como Mackenzie planejou a morte dos membros do culto em três fases: primeiro as crianças, depois as mulheres e os jovens, e, por fim, os homens restantes e ele próprio.

O investigador, que se recusou a se identificar devido à natureza confidencial dos detalhes do caso, disse ainda que Mackenzie negou ter dito a alguém para não comer, acrescentando que ele mesmo estava se alimentando. Quatro parentes de vítimas retrataram Mackenzie como um homem imperioso que cortou os laços de seus seguidores com suas famílias e a sociedade por meio de ensinamentos extremos.

Ele os proibiu de enviar seus filhos à escola e de ir ao hospital quando estavam doentes, rotulando tais instituições como satânicas, disseram eles. As mulheres tinham ordens de cortar o cabelo muito curto e evitar maquiagem. "Educação é algo ruim", disse Mackenzie em um vídeo em março, um dos vários de seus sermões online. "As crianças estão sendo ensinadas sobre práticas gays nos currículos escolares".

Rebecca Mbetsa segurava duas fotos de sua filha Mercy Chai, 31, enquanto procurava seus restos mortais no necrotério do hospital em Malindi, cidade perto da floresta. A primeira, feita antes de Chai se juntar à seita, mostrava-a com tranças longas, enquanto na segunda seu cabelo estava bem curto. "Houve um momento em que ela ficou doente e se recusou a ir ao hospital, dizendo que sua fé não permitia."

Funcionários recebem corpos exumados de seguidores de culto no Quênia, em Malindi
Funcionários recebem corpos exumados de seguidores de culto no Quênia, em Malindi - Monicah Mwangi - 27.abr.23/Reuters

Centenas ainda estão desaparecidos

O número de mortos até agora é de 109, com 101 encontrados em valas comuns e oito pessoas achadas vivas, mas que não resistiram. As autoridades alertam que a cifra de óbitos pode aumentar, com mais de 400 pessoas desaparecidas na região. A tragédia assumiu uma dimensão política, com o presidente do Quênia, William Ruto, afirmando que o governo formará uma comissão judicial de inquérito para estabelecer por que as supostas atividades de Mackenzie não foram detectadas mais cedo.

O problema relacionado aos seguidores começou a surgir em meados de março, semanas antes de as valas comuns serem encontradas, quando um homem disse à polícia que seu irmão e sua esposa haviam deixado seus filhos morrerem de fome na floresta por ordem de Mackenzie, segundo registros judiciais.

Os policiais foram ao local e encontraram dois filhos do casal enterrados em covas rasas. Eles resgataram um terceiro filho, que estava fraco e muito magro. Mackenzie foi preso, e a polícia pediu a um tribunal de Malindi para mantê-lo detido enquanto as investigações prosseguiam, mas um juiz o libertou sob fiança de 10 mil xelins (R$ 368), de acordo com documentos da audiência de fiança e de eventos anteriores.

Após ser libertado, Mackenzie voltou à floresta e antecipou a data do fim do mundo que havia previsto, de agosto para 15 de abril, segundo parentes. Stephen Mwiti, que teme que sua esposa e seis filhos tenham morrido de fome depois de se juntarem ao culto, há dois anos, afirmou que outro ex-membro do grupo lhe contou o momento em que o líder da seita voltou ao acampamento na floresta.

"Quando ele voltou, convocou uma reunião e disse que o mundo estava acabando e, portanto, nós, os escolhidos, precisávamos seguir em frente antes que os problemas viessem", disse Mwiti, citando o relato de um ex-membro do culto que teria sido expulso por beber água em vez de jejuar até a morte.

Em 13 de abril, a polícia, a partir de uma denúncia, retornou à floresta e encontrou 15 pessoas deitadas no chão. Segundo agentes, quatro delas estavam tão fracas que morreram antes de chegar ao hospital. No dia seguinte, Mackenzie foi preso novamente, e a polícia começou a vasculhar a floresta de forma mais sistemática. Em 21 de abril, eles começaram a exumar as covas coletivas.

'Graças a Deus minha família saiu'

Mackenzie cresceu na zona rural do condado de Kwale, no sudeste do Quênia. No início da década de 1990, mudou-se para Malindi, cidade costeira no condado vizinho de Kilifi, onde trabalhou como taxista, segundo o ex-colega Japheth Charo. Ele disse que Mackenzie era incomumente confrontador com as autoridades, acrescentando que uma vez ele foi à Justiça contestar uma multa recebida devido a uma violação menor de trânsito. "Ele odiava perder", recorda Charo. "Sempre defendia sua posição."

Mackenzie ficou cada vez mais focado na religião, frequentando uma igreja batista por alguns anos antes de deixar o táxi para iniciar sua própria igreja em Malindi, em 2003, segundo Charo, que disse que ele e sua família se juntaram à igreja por dois anos, até os sermões de Mackenzie se tornarem alarmantes. "Ele começou a atacar outras religiões, como o islã e o catolicismo. Os sermões começaram a ficar extremos."

Em março de 2017, a polícia revistou o complexo de Mackenzie no bairro Furunzi, em Malindi, e encontrou 43 crianças vivendo lá sem frequentar a escola, de acordo com documentos judiciais da época.

Ele foi acusado de oferecer educação em uma instalação não registrada, mas, após um acordo, continuou seus ensinamentos. Em 2019, as autoridades ordenaram o fechamento da igreja, segundo a polícia —foi quando Mackenzie se mudou para a floresta de Shakahola. Charo disse que ficou horrorizado no mês passado quando soube das covas coletivas encontradas. "Se eu tivesse ficado mais tempo naquela igreja talvez o meu destino teria sido o mesmo", disse. "Mas graças a Deus eu e minha família saímos a tempo."

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