Desigualdade na Venezuela gera abismo entre desnutrição infantil e bolsões de ostentação

Pobreza diminuiu pela primeira vez em sete anos, mas país ainda é um dos mais desiguais do mundo

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Isayen Herrera Frances Robles
Caracas (Venezuela) | The New York Times

Uma loja da capital vende bolsas Prada e um televisor de 110 polegadas por US$ 115 mil (R$ 595 mil). Uma concessionária da Ferrari foi aberta perto dali, e um novo restaurante atrai comensais abastados que podem aproveitar uma refeição sentados sobre um guindaste gigante com vista para a cidade.

"Quando foi a última vez que você fez alguma coisa pela primeira vez?", perguntou o anfitrião do restaurante, falando ao microfone com os clientes alegres que cantavam, acompanhando uma música da banda Coldplay.

Não estamos em Dubai ou Tóquio, mas em Caracas, a capital da Venezuela, onde uma revolução socialista prometeu a igualdade e o fim da burguesia.

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Pôr do sol no La Boîte, restaurante do recém-reformado Hotel Humboldt, em Caracas - Adriana Loureiro Fernandez - 12.jan.23/The New York Times

A economia venezuelana implodiu quase dez anos atrás, desencadeando um grande êxodo de migrantes em uma das piores crises da história moderna da América Latina. Agora, há sinais de que o país está se acomodando a uma realidade nova e desorientadora, com produtos do dia a dia disponíveis, diminuição da pobreza e surpreendentes bolsões de riqueza.

Com isso, o regime socialista do ditador Nicolás Maduro está no comando de uma economia que dá sinais de melhora enquanto a oposição luta para se unir e os Estados Unidos revogam algumas das sanções ao petróleo venezuelano, que ajudaram a dizimar as finanças nacionais.

As condições de vida de uma parcela enorme da população continuam miseráveis e, embora a hiperinflação que havia paralisado a economia venha caindo, os preços ainda triplicam todos os anos, numa das piores taxas de inflação do mundo.

Mesmo assim, desde que o regime reduziu as restrições ao uso do dólar para fazer frente ao colapso econômico nacional, a atividade comercial está voltando ao país que, no passado, foi um dos mais ricos da região.

Assim, a Venezuela é cada vez mais um país de muito ricos e muito pobres —uma das sociedades mais desiguais do mundo, segundo a Encovi, respeitado estudo nacional feito pelo Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais da Universidade Católica Andrés Bello, de Caracas.

Maduro se gaba de que no ano passado a economia cresceu 15% em relação ao ano anterior e que a arrecadação e as exportações também subiram. Mas alguns economistas destacam que os números são enganosos, já que o crescimento do ano passado ocorreu após anos de encolhimento enorme.

Pela primeira vez em sete anos, a pobreza está diminuindo: de acordo com a pesquisa da Encovi, metade dos venezuelanos estão vivendo na pobreza —em 2021 eram 65%.

Mas a pesquisa também constatou que os venezuelanos mais ricos são 70 vezes mais ricos que os mais pobres. Esses números colocam o país no mesmo nível de nações da África que têm os mais altos índices de desigualdade no mundo. Desde 2015, até 7 milhões de venezuelanos abandonaram o país, segundo as Nações Unidas.

Em muitos casos, o acesso a dólares ainda é limitado a pessoas ligadas à ditadura ou envolvidos em negócios ilegais. Um estudo feito no ano passado pela entidade de combate à corrupção Transparency International constatou que atividades ilegais como tráfico de pessoas e contrabando de alimentos, diesel e gás representam mais de 20% da economia da Venezuela.

Partes de Caracas estão cheias de pessoas que têm poder aquisitivo para consumir uma diversidade enorme de importados, mas, segundo a Academia Nacional de Medicina, uma em cada três crianças no país estava sofrendo de desnutrição em maio de 2022.

Apesar do novo slogan da administração Maduro —"a Venezuela está consertada"—, muitos venezuelanos sobrevivem com o equivalente a alguns dólares por dia, e funcionários públicos saem às ruas para protestar contra os salários baixos.

"Tenho que fazer malabarismos", disse Maria Rodriguez, 34 anos, analista de um laboratório médico em Cumaná, uma cidade pequena a 400 km a leste da capital. Para pagar pela alimentação e a escola de sua filha, ela se desdobra entre dois empregos e um bico vendendo produtos de beleza, além de receber ajuda de seus familiares.

Yrelys Jimenez é professora de pré-escola en San Diego de los Altos, a meia hora de carro ao sul de Caracas. Ela disse, brincando, que seu salário mensal de US$ 10 (R$ 51,73) lhe garante "comida para hoje e fome para amanhã". O restaurante que convida seus frequentadores a comer a 50 metros de altura cobra US$ 140 (R$ 724,18) por refeição.

Apesar das dificuldades, Maduro, cuja administração não respondeu a pedidos de declarações, se concentra em alardear os indicadores econômicos venezuelanos em alta.

"Parece que o doente se recupera, se levanta, caminha e corre", disse ele em discurso recente, comparando a Venezuela a um paciente hospitalar que se cura de repente.

A mudança da estratégia dos EUA em relação à Venezuela tem sido, em partes, benéfica para a administração de Maduro.

Em novembro, depois de a administração ter concordado em reiniciar discussões com a oposição, o governo Biden deu à Chevron uma licença de seis meses, prorrogável, para extrair petróleo na Venezuela. O acordo estipula que os lucros devem ser usados para saldar dívidas do regime venezuelano com a empresa.

Embora os EUA ainda proíbam a compra de produtos da estatal petrolífera, a Venezuela aumenta suas vendas de óleo no mercado negro à China por meio do Irã, dizem especialistas no setor energético.

Com as recentes eleições de governos de esquerda, Maduro está emergindo do isolamento na América Latina —Colômbia e Brasil, por exemplo, restauraram as relações diplomáticas com o país vizinho. O novo presidente colombiano, Gustavo Petro, tem demonstrado cordialidade especial em relação a Maduro, reunindo-se com ele várias vezes e fechando um acordo para importar gás venezuelano.

Com eleições presidenciais previstas para o ano que vem e o governo paralelo oposicionista recentemente desfeito, Maduro parece ter ganhado confiança crescente em seu futuro político.

Com inflação de 234% no ano passado, a Venezuela está em segundo lugar no ranking mundial do índice e perde apenas para o Sudão. Mas os números são minúsculos comparados à hiperinflação vista em 2019, quando o índice subiu para 300.000%, segundo o Banco Mundial.

Com a produção e os preços em alta, a Venezuela começa a ver subir sua receita do petróleo, seu principal produto de exportação. A produção atual está em quase 700 mil barris por dia —maior que a do ano passado.

Maduro chegou à Presidência quase dez anos atrás e foi eleito pela última vez em 2018, num pleito visto como fraudulento e rejeitado por boa parte da comunidade internacional.

A ideia generalizada de que houve fraude levou a Assembleia Nacional a considerar que a Presidência estava desocupada e usar um dispositivo da Constituição para nomear um novo líder, Juan Guaidó, um antigo líder estudantil. Guaidó foi reconhecido como líder legítimo da Venezuela por dezenas de países, incluindo os Estados Unidos.

Porém, como chefe de um governo paralelo que supervisionava contas financeiras internacionais congeladas, ele não exercia poder no país.

Em dezembro, a Assembleia Nacional afastou Guaidó e desfez o governo interino, numa medida vista por observadores como positiva para Maduro. Agora, várias figuras da oposição anunciaram que vão se candidatar numa primária programada para outubro, mas analistas políticos duvidam que o ditador vá permitir uma eleição fidedigna.

Tradução de Clara Allai

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