América Latina discute 'febre do lítio' em meio ao apetite de China, EUA e Europa

Região vê projetos explodirem enquanto grandes potências buscam garantir reservas para abastecer veículos elétricos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Buenos Aires

Metade vermelho, metade verde, saiu pelas ruas no início deste mês o primeiro ônibus elétrico completamente movido a lítio da Argentina. "0% emissões", exibe o enorme adesivo na janela do veículo experimental, que pode andar até 200 km antes de ter de voltar à estação para recarregar as baterias.

O produto que começa a chegar à América Latina já é assunto antigo na Europa, nos Estados Unidos e na China e, para que rode por tamanha distância, leva, no lugar de um tanque de combustível, uma quantidade do mineral milhares de vezes maior do que a que celulares ou notebooks concentram.

Funcionário mostra lítio extraído na planta da Sociedade Química e Mineira do Chile, no salar de Atacama - Jorge Villegas - 27.set.22/Xinhua

"[Precisamos] evitar abordar o tema de uma perspetiva colonial", discursou no lançamento do ônibus o ministro argentino Daniel Filmus (Ciência e Tecnologia), expondo o grande debate que permeia a região nos últimos meses e ainda deve durar anos: o que fazer com a explosão da demanda de lítio no mundo.

Enquanto novos projetos de extração do mineral não param de ser anunciados, os países decidem se vão focar a exportação para países ricos ou investir no desenvolvimento da indústria local. Também debatem se vão usá-lo como recurso natural estratégico, de prioridade do Estado, ou se abrirão a exploração para investidores estrangeiros. E ainda é necessário levar em conta os aspectos ambientais.

A América Latina concentra mais da metade do lítio —já apelidado de "ouro branco"— identificado no planeta, e a maior parte está centralizada no "triângulo do lítio", formado por Bolívia, Argentina e Chile, principalmente nos salares de Uyuni, Puna e Atacama, onde o elemento químico é obtido pela evaporação.

Mas, com os preços batendo recordes no ano passado, as fronteiras da exploração se expandiram. O Brasil, que em 2015 praticamente não tinha produção do carbonato, hoje chega a 2% do mercado mundial pela perfuração de rochas, método mais rápido e menos dependente do clima, porém mais caro. México e Peru também começam a entrar no jogo, ainda dominado pela Austrália e por poucos produtores.

As principais impulsionadoras dos novos investimentos na região são empresas chinesas, americanas e europeias, que competem para garantir as reservas, de olho na tão sonhada transição energética —a substituição dos combustíveis fósseis pela eletricidade obtida em fontes renováveis, principalmente no setor automotivo, que cresce a passos largos.

É para esses países que quase todo o lítio latino-americano é escoado, passando antes por refinarias que o transformam em baterias, principalmente na China, na Coreia do Sul e no Japão. Esse fluxo traz de volta o fantasma da palavra "colonização", já que grande parte do debate se concentra na pergunta: devemos apenas exportar matéria-prima ou produzir nossas próprias baterias?

"Preocupa-me que possamos nos tornar uma espécie de canteiro litífero para garantir a transição energética do Norte Global, reproduzindo uma espécie de neodependência, neocolonialismo ou colonialismo verde", afirma Bruno Fornillo, pesquisador do Conicet (Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas da Argentina) e coordenador do estudo "Lítio na América do Sul".

O chileno Francisco Acuña, analista da consultora de mineração CRU, porém, rebate que a região ainda não tem demanda suficiente de veículos elétricos para tal. O Brasil, por exemplo, vai na contramão, ao dar desconto na venda de carros populares. "Aqui eles ainda são considerados item de luxo, não há incentivo. O mais provável é que os países latino-americanos continuem exportando lítio, até que o preço de fabricação dos veículos elétricos seja competitivo e faça sentido produzir baterias", diz o engenheiro.

Quanto à exploração do lítio, até agora as nações têm lidado com o assunto de formas opostas. O foco do governo Lula tem sido atrair investidores estrangeiros para extrair, produzir e exportar só o concentrado do lítio, de alto valor agregado, ainda que estude formas de desenvolver toda a cadeia até chegar às baterias.

Há um mês, lançou o projeto do "Vale do Lítio" na bolsa de Nova York, para fomentar a exploração no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. O Brasil vai no mesmo sentido da Argentina, um dos que mais crescem no setor. O país vizinho está cada vez mais próximo de um tratado de livre comércio de lítio com os EUA e, no mês passado, viu suas duas únicas produtoras do carbonato, uma americana e outra australiana, anunciarem uma fusão para se tornarem uma mega multinacional.

Ambos caminham na direção contrária de alguns latino-americanos, ainda que todos pendam à esquerda. Em maio, o presidente chileno, Gabriel Boric, gerou rebuliço no mercado ao anunciar em cadeia nacional uma nova política do lítio público-privada, com mais controle do Estado, a criação de uma Empresa Nacional do Lítio (que ainda deve passar pelo Legislativo) e prévia consulta a comunidades andinas.

O mexicano Andrés Manuel López Obrador foi além, ao decretar, em fevereiro, a nacionalização do mineral. "O que estamos fazendo agora, guardadas as proporções, é nacionalizar o lítio para que não possa ser explorado por estrangeiros, nem da Rússia, nem da China, nem dos EUA. O petróleo e o lítio são da nação, são do povo mexicano", disse o presidente, em estratégia ainda pouco detalhada.

Funcionário em frente a poça de lítio na planta da Sociedade Química e Mineira do Chile, no Salar de Atacama - Jorge Villegas - 27.set.22/Xinhua

Já a Bolívia, apesar de ter o maior salar do mundo, não produz lítio em nível comercial porque há décadas adota um modelo mais fechado a investimentos internacionais, com a oposição das regiões que abrigam os recursos. O presidente Luis Arce, porém, dá sinais de flexibilização e em janeiro fechou um acordo com o consórcio chinês CBC para construir duas plantas no país até 2025.

Dois meses depois, a general Laura Richardson, chefe do Comando Sul dos EUA, expôs preocupação com a "agressividade da China no terreno do lítio". "Esta região está cheia de recursos, e me preocupa a atividade maligna de nossos adversários, que se aproveitam disso. Parece que eles estão investindo, quando, na verdade, estão extraindo", argumentou ela em apresentação na Câmara de Representantes.

Dentro do cabo de guerra entre as duas potências, o futuro do lítio na América Latina ainda é considerado incerto, assim como os impactos da indústria para o ambiente, que continuam sendo estudados. A única certeza é a de que o apetite por ele não deve parar de crescer tão cedo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.