Itamaraty e militares batem cabeça sobre venda de armas ao Peru

Ministério das Relações Exteriores anuncia veto à exportação, enquanto Defesa diz não ter sido avisada

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Buenos Aires

O chanceler Mauro Vieira pegou o microfone no último dia 24 e disse a uma sala repleta de deputados em Brasília que conversou com o presidente Lula e que o Brasil "não vai mais vender armas ao Peru" enquanto a situação do país andino não se estabilizar, em fala repercutida em diversos veículos internacionais.

Só faltou o Itamaraty combinar com os militares, que também devem dar o aval a esse tipo de exportação por empresas. "O Ministério da Defesa não foi formalmente informado de que haverá alteração nas relações comerciais com o Peru", informou a pasta ao ser questionada sobre a decisão.

Policiais peruanos se protegem de pedras jogadas por manifestantes em protesto contra o governo de Dina Boluarte em 24 de janeiro, em Lima - Ernesto Benavides - 24.jan.23/AFP

Trata-se de mais um episódio de ruído entre os dois órgãos dentro do governo. Ambos têm tido problemas de comunicação alimentados pela atuação das Forças Armadas na política externa, mostrou a Folha na última semana, com a organização de eventos e treinamentos militares com países aliados.

Apesar da fala de Vieira aos deputados, o tema, segundo a Folha apurou, ainda está em debate entre as pastas, que analisam a legislação. O Itamaraty não respondeu às perguntas da reportagem, enquanto o Ministério da Defesa, como já citado, diz apenas que não foi informado sobre mudanças. Assim, ainda não se sabe se o Brasil vai ou não suspender a exportação de armas ao Peru, e se a determinação se limitará a armas letais —que o governo diz já não vender há três anos— ou se valerá também para as menos letais.

A presidente peruana, Dina Boluarte, é investigada sob a acusação de genocídio, homicídio e lesão grave na repressão aos atos que mataram 49 civis e 7 agentes de segurança em dezembro e em janeiro. Os atos começaram após a destituição de seu antecessor, Pedro Castillo, que tentou um fracassado autogolpe.

Em relatório, a ONG Anistia Internacional afirma que, de 23 autópsias a que teve acesso, 19 mortes foram causadas por armas de fogo, e 3, por projéteis de chumbo. Dina, que prestou depoimento nesta terça (6) sobre o caso, reagiu: "O relatório não afirma que houve violações de direitos humanos. Diz na condicional: 'haveria'. Quem vai investigar é o Ministério Público".

No caso da exportação de armas letais, tanto o Itamaraty quanto o Ministério da Defesa precisam dar o aval. Quando se trata de armas menos letais, como sprays e balas de borracha, as exportações passam apenas pela Defesa, que já indicou não ver impedimentos para a venda ao Peru.

"O Ministério da Defesa [...] avaliou se todos os requisitos estavam preenchidos [...] e, como não foi constatada qualquer restrição imposta ao país importador [Peru], seguiu os preceitos vigentes, não se identificando violação aos padrões autorizados", escreveu o ministro José Múcio em ofício de fevereiro.

Nos bastidores, há pressão das empresas brasileiras que produzem artigos de defesa para que a pasta não vete nenhuma exportação neste momento, porque as companhias enfrentam um declínio nas vendas. Diante desse panorama, o ministro da Defesa prometeu promover essas firmas fora do país.

No ofício, ele se referia à venda de quase 30 mil cartuchos de gás lacrimogêneo feita pela empresa brasileira Condor Tecnologias Não Letais, de Nova Iguaçu (RJ), à Polícia Nacional peruana. O contrato, revelado pelo jornal local La República, foi assinado em 20 de dezembro, ainda na gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL) e dias após a morte de 16 pessoas na repressão a protestos no interior do Peru.

Em janeiro, já no governo Lula, essa venda foi questionada pela deputada federal Fernanda Melcchiona (PSOL-RS), por meio de ofícios enviados ao Itamaraty e à Defesa. A resposta do primeiro ministério foi que a exportação de armas não letais não era de sua competência, e a do segundo, o ofício de Múcio.

A parlamentar, então, juntou-se a outros deputados do PSOL e da Rede e entregou um novo ofício nas mãos do chanceler Vieira, em março: "Ainda que não haja impedimento legal, não parece compatível com a nova orientação da política externa brasileira, pautada no diálogo e no respeito aos direitos humanos, fornecer munição a ser usada contra movimentos sociais e o conjunto da população", argumentou.

No último dia 24, a deputada voltou a cobrar Vieira, desta vez em audiência da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, durante a qual o chanceler prestou contas sobre o encontro do G7 no Japão. Foi quando ele afirmou que Lula decidiu suspender a venda de armas ao Peru. Na ocasião, o ministro disse que hoje não há pedidos para a exportação de armas letais ao país vizinho em curso. "As armas que estão lá foram vendidas três anos atrás. Enquanto a situação perdurar, essa exportação não vai voltar a existir."

No Peru, a repercussão das falas fez o Conselho de Ministros, principal órgão de tomada de decisão do Executivo peruano, se posicionar: "Diante das informações que circulam sobre uma suposta decisão do Brasil de suspender a venda de armas ao Peru, especifica-se que não há encomendas em andamento nem compras pendentes desse tipo", escreveu o órgão nas redes.

Nem o Itamaraty nem a Defesa responderam ao pedido da Folha para informar quantas armas e munições, letais ou menos letais, foram vendidas ao Peru nos últimos anos. Os dados de exportações de armas que são públicos, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, porém, mostram que o Brasil exportou ao país ao menos US$ 1,9 milhão (R$ 9,4 milhões) desde 2021 em espingardas e carabinas —com um pico em 2022, ainda no governo Bolsonaro, conforme compilou o Instituto Sou da Paz.

Empresas brasileiras ainda receberam US$ 485 mil (R$ 2,4 milhões) pela venda de cartuchos para espingardas e carabinas, categoria que também pode incluir munições menos letais. Mas esses números, de acordo com a entidade, podem se referir a vendas feitas no mercado civil, ou seja, para defesa pessoal ou tiro esportivo, não para forças de segurança do governo.

Colaborou Cézar Feitosa, de Brasília

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