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Bukele propõe reduzir Congresso e número de cidades de El Salvador em busca de reeleição

Presidente de viés autoritário também tenta vender campanha anticorrupção com alegada 'guerra contra colarinho branco'

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São Paulo

Considerado expoente de uma guinada autoritária que ronda a América Central, Nayib Bukele, presidente de El Salvador, anunciou na noite desta quinta-feira (1º) um novo pacote de propostas para pavimentar sua campanha a uma possível reeleição no pleito de 2024.

O combo envolve criar uma prisão para o que chama de "delinquentes de colarinho branco", em uma nova empreitada que o salvadorenho promete imprimir contra a corrupção, além de uma reforma que reduz o número de assentos no Legislativo e o de municípios do país.

O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, durante discurso ao Legislativo, em San Salvador
O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, durante discurso ao Legislativo, em San Salvador - Marvin Recinos - 1º.jun.23/AFP

Os anúncios foram feitos em uma cerimônia de pompa, ao estilo de Bukele, no Palácio Legislativo, em San Salvador, para marcar quatro anos de mandato. O líder foi recebido por parlamentares e pelas Forças Armadas, e o discurso foi transmitido em rede nacional de TV e rádio.

Bukele pouco detalhou os projetos —assentos legislativos passariam de 84 para 60, e as cidades, de 262 para 44. Ao final, a proposta teria de ser aprovada pelo Congresso unicameral, Casa na qual o presidente tem vantagem confortável, uma vez que o seu partido, o Novas Ideias, tem 56 deputados.

Após a aprovação no Legislativo —que deve ocorrer com relativa tranquilidade—, a medida vai mudar o mapa eleitoral e terá impacto direto na próxima eleição, que renova o Congresso e cargos municipais.

O histórico recente mostra que essas já eram ideias ventiladas. Em 15 de maio, o Legislativo aprovou uma proposta do presidente para derrubar um artigo do código eleitoral que proibia mudanças do tipo um ano antes dos pleitos —a população vai às urnas em fevereiro de 2024.

Documento obtido pelo jornal local El Faro, que se mudou para a Costa Rica denunciando a repressão do governo, mostra que a justificativa oficial para o plano, fruto de uma demanda de Bukele, seria que municípios rentáveis absorvam regiões que não sobrevivem sem ajuda do governo central.

Nesse sentido, o projeto se assemelha à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) apresentada pelo então presidente Jair Bolsonaro em 2019, que previa que municípios com menos de 5.000 habitantes e arrecadação própria menor que 10% da receita total fossem incorporados por municípios vizinhos. Alvo de críticas e protestos no Brasil, a PEC acabou arquivada ao final do mandato de Bolsonaro, sem avanços.

Em El Salvador, especialistas ainda têm dúvidas sobre as consequências das propostas. Alguns, no entanto, já ensaiam que as medidas visam a concentrar ainda mais poder nas mãos de Bukele, que goza de ampla popularidade.

A guatemalteca Ana María Méndez Dardón, diretora para América Central na ONG Wola (Washington Office for Latin America), diz à Folha que a mudança no mapa tenta "dar a impressão de que todo o país apoia Bukele". "Ele é popular, mas seu partido não é tão popular quanto parece, em especial prefeitos de áreas rurais. Ao mudar o número de municípios, ele corre atrás da base territorial que não tem. Parece que limitará as regiões onde tem pouca aprovação e as fundirá com outros onde o partido tem mais apoio."

Também há dúvidas sobre as possíveis consequências da redução no número de cadeiras do Legislativo. Em março, a respeitada ONG local Ação Cidadã divulgou amplo estudo projetando seus desdobramentos. A principal conclusão é que a mudança vai impactar o sistema de partidos salvadorenhos.

O temor fica por conta do cenário mais pessimista projetado pelos cálculos que envolvem a estimativa da população local, a intenção de votos e o sistema eleitoral de El Salvador: o Novas Ideias, de Bukele, poderia concentrar até 83% das vagas no Legislativo.

"Uma concentração como essa poderia significar a consolidação de um sistema de partido hegemônico em que até podem existir outras opções políticas, mas elas não têm chance real de acessar o poder", diz um trecho. "A mudança busca beneficiar a representação popular ou concentrar poder em uma só força política?", questiona o estudo.

Numa espécie de campanha de marketing, Bukele prometeu ainda capitanear uma "guerra contra a corrupção". "Construiremos uma prisão para os corruptos. Investigaremos tudo o que têm e faremos com que devolvam o que foi roubado", prometeu. Para mostrar que a medida já está em curso, afirmou que, naquele momento, a Procuradoria-Geral estava desapropriando bens do ex-presidente direitista Alfredo Cristiani, que governou de 1989 a 1994. Bukele disse que ele havia saído do país —não apontou o destino—, mas que a Justiça prepara uma gama de acusações contra o ex-líder salvadorenho.

Ainda durante o discurso, Bukele reverenciou sua principal agenda, a guerra contra as gangues —"maras" ou "pandillas"—, afirmando que o projeto permitiu ter mais segurança nas ruas. Cifras oficiais dizem que 69 mil supostos membros de gangues estariam encarcerados. Mas é também por essa campanha, que envolveu a inauguração de uma prisão para 40 mil detentos, que Bukele recebe críticas por violações de direitos humanos. Mais uma delas veio nesta sexta, por parte da ONU.

O Alto Comissariado de Direitos Humanos criticou a manutenção de um estado de exceção no país da América Central desde março de 2022 —em entrevista à Folha em janeiro, o vice-presidente Félix Ulloa disse que não havia planos de encerrar a medida. Em nota, o órgão da ONU menciona recente relatório da ONG Cristosal segundo o qual ao menos 153 detentos morreram desde que o governo implementou o estado de exceção, cerca de metade deles de maneira violenta.

"Pedimos que encerrem o estado de exceção, revisem as medidas que têm introduzido e investiguem as mortes sob custódia de acordo com normas internacionais, que os responsáveis sejam punidos e que se garanta a justiça de reparação a familiares e vítimas", diz o documento.

Para alguns órgãos, El Salvador deixou de ser uma democracia sob Nayib Bukele. O relatório mais recente do instituto sueco V-Dem, uma referência na análise de regimes políticos, mostra que El Salvador foi um dos países que mais sofreu retrocessos democráticos em 2022, quando caiu 13 posições e ficou em 132º em um ranking que avalia a qualidade da democracia em 179 países. O Brasil é o 58º.

Hoje, a organização considera a nação de Bukele uma autocracia eleitoral —há eleições multipartidárias, mas outros pilares democráticos estão ausentes. Para Dardón, da ONG Wola, a resposta internacional tem sido tímida. "Há pouca possibilidade de influência de sistemas internacionais, com os quais Bukele não dialoga, e não temos visto respostas enérgicas de outros líderes contra o seu autoritarismo."

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