Enquanto a contraofensiva ucraniana se desenrola e a Rússia fez cair dezenas de drones e mísseis sobre o país vizinho nesta terça (20), a troca de acusações entre Moscou e Washington acerca da guerra voltou a crescer, elevando temores de que o conflito iniciado em 2022 escale para algo mais amplo.
Na noite de segunda (19), o presidente americano, Joe Biden, disse que há risco real de Vladimir Putin usar armas nucleares táticas, aquelas desenhadas para emprego localizado contra alvos militares, na Ucrânia.
Em encontro com doadores de campanha na Califórnia, ele disse: "Quando estive aqui há dois anos e disse que estava preocupado com a seca do rio Colorado, todos me olharam como se eu estivesse louco. E me olham assim quando digo que estou preocupado que Putin use armas nucleares táticas. É real".
O rio em questão, claro, está enfrentando uma crise existencial devido à seca e ao uso incorreto de suas águas. Biden já havia comentado que a decisão russa de posicionar armas nucleares táticas na vizinha Belarus, o que segundo Putin já ocorreu, é "absolutamente irresponsável".
O Kremlin argumenta que a posição americana é hipócrita, dado que Washington tem cerca de cem armas táticas estocadas em seis bases de aliados da Otan, o clube militar que lidera, na Europa. Mas politicamente é um movimento agressivo, que não acontecia desde o fim da União Soviética em 1991.
Vizinha direta de três países da Otan, Belarus não participa oficialmente da Guerra da Ucrânia, mas libera seu território como base russa para tal. Nos últimos três anos, o enfraquecimento político da ditadura local levou o país para uma esfera de controle do Kremlin.
Contra a visão do americano, a própria Otan disse não ter visto nenhuma mudança na postura nuclear russa, no sentido de risco de uso das armas. Especialistas vão na mesma linha, além de duvidar até do anúncio oficial da presença das ogivas em Belarus.
Enquanto Biden volta a tocar o sino do risco da Terceira Guerra Mundial, uma consequência possível do uso de uma bomba atômica contra tropas ucranianas, a Rússia fez questão de desenhar sua linha vermelha mais recente no conflito: a Crimeia, península que Putin absorveu em 2014, quando o governo aliado no vizinho foi derrubado por ativistas pró-Ocidente.
"Segundo nossas informações, a liderança das Forças Armadas da Ucrânia planeja atacar o território da Federação Russa, incluindo a Crimeia, com mísseis Himars e Storm Shadow", disse o ministro Serguei Choigu (Defesa) em encontro com generais, referindo-se a armas americana e britânica, respectivamente.
"O uso desses mísseis fora da zona da operação militar especial significará o total envolvimento de EUA e Reino Unido no conflito e levará a ataques imediatos a centros de decisão na Ucrânia", afirmou, deixando a ambiguidade no ar se a Rússia alvejaria os rivais ocidentais diretamente, o que analistas duvidam.
Ainda assim, foi a primeira vez que Choigu se referiu de forma específica à Crimeia, corroborando a visão de que a Rússia teme algum sucesso da contraofensiva iniciada no dia 4. Ela se concentra por ora em Donetsk (leste) e Zaporíjia (sul) —esta última a região que separa a área sob controle de Kiev da Crimeia.
Observadores dizem acreditar que o objetivo do governo de Volodimir Zelenski é infligir danos à ligação terrestre entre a Rússia e a Crimeia, feita pela anexação ilegal de Zaporíjia e sua vizinha Kherson, também no sul ucraniano. A partir daí, tornar a península vulnerável a ponto de ser abandonada por Moscou.
Para a Rússia, isso é inaceitável. A anexação, vista como ilegal também pela ONU, era um fato consumado diplomático até o início da guerra por se tratar de um território historicamente russo, cedido por capricho da liderança soviética a Kiev em 1954, mantendo ali a vital base da Frota do Mar Negro de Moscou.
Assim, perdê-la implicaria uma humilhação que ninguém acredita que Putin, ou a elite russa, aceitaria. Se os russos estão dispostos a usar armas nucleares táticas, algo que o presidente russo já disse não fazer sentido exceto em caso de "risco existencial" a seu país, é uma dúvida que o Kremlin gosta de deixar no ar.
A fala de Choigu ainda dá gás à teoria de que foram os russos que explodiram a represa de Nova Kakhovka, há duas semanas, inundando as margens do rio Dnieper e inviabilizando, ao menos por ora, operações militares na região. Se Kiev queria atacar por ali, terá de esperar, não se sabe por quanto tempo.
Em campo, a contraofensiva ainda se arrasta de forma violenta. As Forças Armadas ucranianas afirmam fazer progressos pontuais e dizem ter avançado ao todo 7 km em direção sul, em Zaporíjia, mas que não conseguiram sucesso no leste —onde a Rússia ensaia até uma ofensiva contrária, na região de Adviika.
Tal avanço não significa o rompimento das defesas russas, estabelecidas em camadas ao longo dos últimos meses, enquanto o atrito principal da guerra se dava em torno de Bakhmut (Donetsk), por fim tomada por Moscou numa batalha tocada principalmente pelo grupo mercenário Wagner —que diz ter perdido 16 mil homens lá, 10 mil dos quais condenados presos que trocaram a pena pelo serviço.
Choigu afirmou que foram repelidos até aqui 263 ataques ao longo da frente, que se estende por 1.000 km. Enquanto isso, a Rússia mantém a escalada de ataques aéreos, agora concentrados à noite.
Nesta madrugada (noite de segunda no Brasil), sirenes antiaéreas soaram por quatro horas em Kiev, devido a 35 drones iranianos Shahed-136, 32 dos quais teriam sido abatidos, segundo o governo. A cidade de Lviv também foi alvo, assim como a capital homônima de Zaporíjia, atingida por mísseis balísticos.
Houve uma grande explosão em uma "infraestrutura crítica" não nomeada em Lviv, segundo a Força Aérea. Seu porta-voz, Iurii Ihnat, afirmou a uma rádio que "é impossível para as defesas cobrirem todo o país".
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