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Ucrânia encara resistência do Sul Global para criar tribunal internacional

Para Kiev, corte especial é único jeito de responsabilizar Putin por invasão e início da guerra

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Kiev

A Ucrânia enfrenta resistência para conquistar o apoio do chamado Sul Global na criação de um tribunal especial internacional. Na visão de Kiev, uma corte do tipo seria a única maneira de responsabilizar o líder russo, Vladimir Putin, e o alto escalão do governo em Moscou pelo crime de agressão —o planejamento, a preparação e a execução da invasão armada que deu origem à guerra que já dura mais de 16 meses.

Mas para formar o novo tribunal, a Ucrânia precisa dos votos de dois terços dos 193 integrantes da Assembleia-Geral das Nações Unidas, e, neste momento, a proposta foi endossada por cerca de 40 países, entre os quais EUA, Reino Unido e Alemanha. Por outro lado, são poucas as nações emergentes que apoiam abertamente a iniciativa –na América Latina, apenas Costa Rica, Guatemala, Uruguai e Chile.

O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, olha para o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, durante entrevista coletiva em Kiev, na Ucrânia - Serguei Supinski - 16.jun.23

Muitos países do Sul Global resistem a apoiar a criação do tribunal internacional ou a adotar sanções devido a laços econômicos ou estratégicos com Moscou. A Índia, que se absteve em votação da resolução da ONU que condenou a invasão russa, aumentou significativamente suas importações de petróleo russo, apesar das sanções internacionais, e é grande comprador de armamentos de Moscou.

O Brasil importa 80% dos fertilizantes usados na agricultura, e a maior parte vem da Rússia. O país apoiou a resolução da ONU, mas rejeitou, por exemplo, pedido da Alemanha para enviar munição à Ucrânia e também não adere a sanções unilaterais.

Há quase duas semanas, o líder ucraniano, Volodimir Zelenski, recebeu em Kiev uma delegação de líderes africanos, como o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, e abordou a importância de estabelecer a nova corte. Zelenski ligou recentemente para os líderes de Costa Rica e Belize e também falou do tribunal.

"Há uma lacuna: não existe mecanismo internacional para julgar o crime de agressão", disse à Folha Iuri Bilousov, chefe do departamento de crimes de guerra na Procuradoria-Geral da Ucrânia. "Trata-se de um crime de elite, que não é cometido por soldados rasos –são líderes políticos que têm o poder de começar ou terminar uma guerra, pessoas que têm autoridade para planejar uma invasão. É muito difícil conectar um crime de guerra cometido por um soldado a uma alta autoridade."

Presidentes, premiês e chanceleres têm imunidade e não podem ser processados em tribunais nacionais. Assim, só podem ser julgados por cortes como o Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, cuja jurisdição são crimes de genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes de agressão.

No caso das três primeiras violações, o TPI só pode atuar se a infração tiver sido cometida por um cidadão de um país signatário do Estatuto de Roma, que criou o tribunal, ou num país nessa condição. Há, ainda, a possibilidade de que a transgressão tenha ocorrido numa nação que aceitou a jurisdição da corte.

Rússia e Ucrânia não são signatários do estatuto, mas o governo ucraniano concedeu jurisdição ao TPI, o que possibilitou ao tribunal investigar Putin e Maria Lvova-Belova, comissária para direitos das crianças, acusados de deportar crianças ucranianas em massa à Rússia, potencialmente um crime de guerra.

Há um mandado de prisão contra o líder russo e Belova. Na Rússia, que não assinou o tratado, eles estão seguros, mas se pisarem em um país signatário do documento eles podem, em tese, ser detidos.

Mesmo assim, é difícil o TPI punir figuras de alto escalão –em mais de 20 anos, a corte só condenou cinco pessoas por crimes de guerra e contra a humanidade, e nenhuma delas pertencia à alta liderança de países —todos eram chefes de milícias na República Democrática do Congo, no Mali e em Uganda.

Punições para crimes de agressão são ainda mais difíceis. Para que o TPI possa investigar, é preciso que os dois países envolvidos –o agressor e o agredido— sejam signatários do protocolo que regulamentou a jurisdição dessa violação na corte ou que exista um pedido de investigação do Conselho de Segurança da ONU, algo que nunca acontecerá, já que a Rússia, membro permanente do órgão, tem poder de veto.

Relatório de março da ONU documentou centenas de casos que podem configurar crimes de guerra e contra a humanidade em áreas sob ocupação russa: deportação em massa de crianças, uso sistemático de torturas como choques e sessões em que crianças são forçadas a ver familiares sendo estuprados.

A Rússia nega as acusações, e o relatório também identifica "um número pequeno de violações" cometidas pelas forças ucranianas, incluindo tortura de prisioneiros de guerra.

Ainda que um tribunal especial seja visto como a única forma de responsabilizar líderes russos, as cortes ucranianas examinam milhares de casos de potenciais crimes de guerra cometidos por militares do país. Segundo Bilousov, da Procuradoria-Geral, já foram registrados 87,5 mil crimes, incluindo tortura, violência sexual e ataques a edifícios civis e infraestrutura médica. Além disso, há 669 casos de crimes de agressão que teriam sido cometidos por membros do Parlamento russo e chefes dos serviços de segurança.

Entre os mais de 87 mil casos, a Justiça ucraniana apresentou acusações formais em 329 deles. Desses, 198 já foram encaminhados aos tribunais e 50 resultaram em condenações por crimes de guerra.

Segundo o procurador, dos 50 condenados, 15 são prisioneiros de guerra e 35 foram condenados "in absentia" e talvez nunca sejam encontrados. "Mesmo os casos em que os acusados não estão na Ucrânia são importantes, porque as condenações nos ajudam a congelar bens e a restringir seus movimentos em outros países", afirma Bilousov. As penas variam de oito anos de detenção a prisão perpétua.

Wayne Jordash, advogado à frente do Global Rights Compliance, que auxilia procuradores ucranianos, vê com pessimismo a chance de Kiev conseguir criar a corte especial, devido à falta de apoio do Sul Global. "Mas os ucranianos são persuasivos, ninguém achava que eles conseguiriam caças F-16 e tanques."

O governo brasileiro reconhece o mérito de buscar a responsabilização dos envolvidos na guerra, mas vê a criação de um tribunal especial neste momento como contraproducente. Ao estabelecer uma corte cuja finalidade seria, na prática, condenar Putin, haveria ainda menos incentivos para que o presidente russo negocie o fim do conflito. Além disso, poderia deixar o chefe do Kremlin com a sensação de estar sendo encurralado, uma ideia ruim para uma potência nuclear, segundo raciocínio entre membros do governo.

O presidente francês, Emmanuel Macron, também se mostrou cético em discurso em maio. "Se daqui a alguns meses houver uma janela de oportunidade para negociar com o governo russo, a questão será uma arbitragem entre um julgamento e uma negociação", afirmou. "Senão você se põe em uma situação impossível, dizendo 'eu quero aque você vá para a prisão, mas você é o único com quem posso negociar'."

EUA e Alemanha são os grandes defensores da criação do tribunal, ainda que proponham um modelo híbrido, com jurisdição derivada da lei ucraniana aliada a elementos internacionais. Para Kiev, esse modelo não teria força para punir chefes de Estado e de governo. Muitos líderes temem que uma corte especial seja usada depois para julgar crimes de agressão de outros países e, assim, não querem se arriscar.

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