Animação sobre racismo na polícia abre debate sobre censura em Portugal

Corporação apresenta queixa-crime contra TV pública por desenho em referência a morte de adolescente na França

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São Paulo

A polícia de Portugal apresentou nesta segunda-feira (10) uma queixa-crime contra a TV pública do país, a RTP, por uma animação exibida na última quinta-feira (6), durante a cobertura de um festival de música. Na peça, um policial dispara uma sequência de tiros que se intensifica à medida que a cor do alvo escurece.

Segundo o coletivo Spam Cartoon, autor da animação, o desenho se refere ao caso de Nahel, 17, francês de origem argelina morto por um policial após ser parado numa blitz na região metropolitana de Paris há duas semanas. A morte gerou uma onda de protestos contra a polícia francesa, acusada de racismo.

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Animação do coletivo Spam Cartoon, exibido pela TV pública portuguesa, gera queixa-crime da polícia - Reprodução via RTP

A polícia lusa disse em nota que o desenho é ofensivo, espalha fatos inverídicos e põe a credibilidade e o prestígio da corporação em questão. Na queixa-crime contra o coletivo e a TV, foram anexadas supostas provas ao Ministério Público, ao regulador dos meios de comunicação e à comissão de jornalistas.

A peça mostra um policial de perfil dando quatro sequências de tiros com intensidade crescente. Em seguida, são exibidos os alvos —enquanto o primeiro, branco, não é atingido pela única bala disparada em sua direção, o último, de pele mais escura, foi alvejado por todos os tiros.

"Trabalhamos para a RTP desde 2017, e o cartum é sempre feito num contexto de atualidade nacional e internacional", disse o ilustrador André Carrilho, cofundador do coletivo, à Lusa. "Neste caso, tem a ver com a morte de um jovem francês nas mãos da polícia que deu origem a vários tumultos pelo país inteiro."

A peça já havia gerado polêmicas na arena política do país. No último sábado (8), após um sindicato de policiais anunciar que apresentaria a queixa-crime, o PSD (Partido Social Democrata), de centro-direita, questionou o Conselho de Administração da RTP por supostamente atentar "de forma evidente e infeliz contra a imagem e o bom nome" da polícia, de acordo com o jornal local Público.

A sigla questionou se a emissora teve acesso prévio à animação. "Em caso afirmativo, há regras editoriais acerca dos conteúdos transmitidos para assegurar o adequado equilíbrio entre a liberdade de imprensa e a proteção de outros direitos, nomeadamente para evitar conteúdos racistas e xenófobos?"

Nesta segunda-feira, o ultradireitista Chega também se manifestou. O partido quer uma audição em caráter de urgência com diversas entidades relacionadas à TV, incluindo o regulador dos meios de comunicação. Para a sigla, a peça insinua que a polícia "é racista" e tem "o claro intuito de difamar e incitar ao ódio contra os polícias".

Questionado, o ministro da Cultura luso, Pedro Adão e Silva, disse que "o humor e o cartum devem ser um espaço que deve gozar de particular autonomia e não interferência editorial". "Devemos levar a sério essa autonomia", afirmou, segundo o Público. "Surpreendo-me sempre que muitos daqueles que defendem a liberdade do humor e do cartum numas determinadas matérias e, depois, noutras, já pensam o contrário."

Por outro lado, o ministro do Interior, José Luís Carneiro, que chefia as forças de segurança, contatou a emissora para "manifestar desagrado" com a transmissão.

Em nota, a RTP afirma que aceita as críticas, mas que o espaço destinado a animações é de "criação e opinião" e que não serviu para instigar violência. "Podemos discordar de uma ideia ou de um cartum, mas isso não deve justificar qualquer forma de censura. A RTP continuará intransigente na defesa da liberdade de expressão e de opinião, princípios basilares da democracia e do serviço público."

Organizações nacionais e internacionais já expressaram preocupação com a violência policial no país. Em abril, o Comitê da ONU para a Eliminação da Discriminação Racial disse estar preocupado com informações que indicavam o "uso excessivo da força por policiais", em especial contra pessoas negras.

Com Reuters

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