Com ação na Cisjordânia, Israel tenta eclipsar crise doméstica, diz especialista

Ofensiva aumenta instabilidade na região e coloca em xeque liderança da Autoridade Nacional Palestina

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São Paulo

A maior ofensiva militar em 20 anos lançada por Israel contra a Cisjordânia ocupada nesta semana foi uma jogada do premiê Binyamin Netanyahu para tentar eclipsar a crise doméstica que seu governo enfrenta, avalia o historiador Michel Gherman, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ao mesmo tempo, diz ele, a ação não deverá intensificar o conflito entre as organizações extremistas da Palestina e o Estado israelense, ao contrário do que se pode pensar num primeiro momento.

Palestinos reunidos durante enterro de homem que morreu em Jenin, na Cisjordânia ocupada, durante ações do Exército de Israel
Palestinos reunidos durante enterro de homem que morreu em Jenin, na Cisjordânia ocupada, durante ações do Exército de Israel - Ronaldo Schemidt - 5.jul.23/AFP

Segundo Gherman, a incursão que terminou na quarta-feira (5), após dois dias de ações, é explorada por Bibi, como o premiê é conhecido, numa tentativa de conter protestos massivos contra o governo, desviando a atenção da sociedade para o conflito na Cisjordânia.

"Israel está numa situação de caos absoluto", afirma o especialista em Oriente Médio que também é assessor acadêmico do Instituto Brasil-Israel. "Existe uma sublevação popular, e o governo tenta abafar a crise produzindo uma situação de ataque contra os palestinos."

Netanyahu lidera o governo mais à direita na história de Israel e há meses é alvo de manifestações devido a uma controversa proposta de reforma judicial. O projeto de Bibi é apontado como um instrumento que corrói a democracia à medida que mina a independência do Judiciário.

O líder iniciou a reforma logo após tomar posse, em 29 de dezembro, num movimento que colocou o país em ebulição e causou uma das maiores crises domésticas na história local recente. Milhões têm ido às ruas, semana após semana, em manifestações contra a medida.

Pressionado, Netanyahu ordenou a ofensiva na segunda (3), no campo de refugiados de Jenin. A operação mobilizou de 1.000 a 2.000 soldados com o apoio de veículos blindados e de drones para ataques aéreos. O premiê diz que a operação foi necessária para desmantelar o que chama de "ninho de vespas". Ele acusa militantes palestinos de praticarem atividades criminosas livremente na região.

Nos dois dias em que a incursão atraiu a atenção da comunidade internacional, Gherman diz que as forças de Israel usaram armas pesadas contra milícias independentes com baixa capacidade ofensiva e sem vínculos diretos com os grupos radicais, incluindo o Hamas, o Fatah e o Jihad Islâmico.

Segundo ele, a maior operação em 20 anos na região não provocou mobilizações significativas de grupos armados palestinos. "O Hamas, por exemplo, louvou a resistência, mas ficou por aí." Assim, diz o professor, a operação não deverá intensificar os conflitos entre os principais grupos radicais palestinos e o Estado israelense. "Com o caos em Israel, não interessa à sociedade palestina entrar em um confronto que mobilizaria os israelenses em outra direção."

A crise atual está aquém da registrada na chamada Segunda Intifada, marcada pelo levante palestino contra autoridades de Israel e por episódios de violência que provocaram mortes dos dois lados na primeira metade da década de 2000. Na época, diferentemente do que ocorre hoje, havia ação coordenada da população palestina, frustrada com o fracasso dos Acordos de Oslo (1993), que buscaram a paz entre os dois lados. "Hoje há divisões internas [na Palestina]. Não há unidade."

A operação em Jenin resultou na morte de ao menos 12 palestinos e de um soldado israelense. Também deixou dezenas de feridos. O Exército de Israel diz ter atingido o centro de operações de um grupo armado local e unidades de fabricação de explosivos, além de ter detido 30 suspeitos e apreendido armas e dinheiro que seriam destinados ao financiamento de atividades terroristas.

Embora não tenha mobilizado grupos radicais palestinos, a ofensiva em Jenin pode aumentar o número de ações terroristas isoladas em território israelense, cometidas pelos chamados lobos solitários, diz Gherman. O primeiro atentado em Israel após a operação ocorreu na terça-feira, um dia após o início da incursão no campo de refugiados, quando um palestino feriu oito pessoas em Tel Aviv.

O responsável pelo ataque tinha vínculos com o Hamas, e o grupo, após o episódio, elogiou a ação, descrevendo-a como uma "resposta natural" à operação israelense no campo de Jenin.

Câmeras de segurança registraram o momento em que uma caminhonete em alta velocidade avançou sobre uma calçada em frente a um centro comercial e atingiu ao menos dois pedestres. Em seguida, o motorista, identificado pelas autoridades como o palestino Abed al-Wahab Khalaila, 20, saiu do carro pela janela, esfaqueou uma pessoa e perseguiu outras. Ele foi baleado e morto por um civil.

A instabilidade na região é agravada pela fragilidade da Autoridade Nacional Palestina, concebida como um governo de transição até o estabelecimento de um Estado na área e que sai enfraquecida da operação de Israel em Jenin. Líderes do órgão foram alvo de protestos após os israelenses deixarem o campo.

As manifestações chamam a atenção para a falta de protagonismo da entidade que, estabelecida há quase 30 anos, parece não fazer frente nem aos militantes de Jenin e Nablus, outro grande reduto de grupos armados na Cisjordânia, nem a Israel.

Gherman diz que a Autoridade Nacional Palestina está desgastada e "próxima da falência". Seus líderes são acusados de corrupção e têm baixo apoio popular, acrescenta o professor, que alerta para o risco de que a organização seja substituída por um grupo mais radical e fundamentalista, como o Hamas.

Outro ponto de tensão está nas disputadas colinas de Golã, na fronteira entre Síria, Líbano, Israel e Jordânia. Na quinta (6), forças israelenses e libanesas voltaram a se enfrentar na região. Segundo Gherman, trata-se de um efeito indireto da operação em Jenin. "Aproveitou-se uma situação de indignação para a eclosão de novos conflitos em Golã."

Os dois países estão tecnicamente em guerra há anos. Embora ela não seja contínua —as duas nações assinaram um acordo demarcando fronteiras marítimas no ano passado—, as ofensivas aconteceram três meses depois do pior confronto entre as partes em anos.

Se a incursão em Jenin teve o objetivo de abafar a crise interna, os resultados até aqui são questionáveis. Na segunda, protestos contra a reforma judicial no aeroporto Ben Gurion, o maior de Israel, atrasaram voos. Na quarta, o comandante da polícia de Tel Aviv, Ami Eshed, demitiu-se, acusando Netanyahu de o pressionar para que a polícia usasse mais força contra os que protestam contra o governo.

"Estou pagando um preço intoleravelmente alto pela minha escolha de evitar uma guerra civil", disse Eshed ao anunciar a decisão.

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