Crianças ucranianas com câncer travam batalha a mais na guerra

Apesar de dificuldades, especialistas dizem que cooperação com parceiros internacionais aumentou na crise

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Megan Specia
Kiev | The New York Times

Mikola, de 18 meses, percorreu o corredor do hospital infantil nacional em Kiev, na capital da Ucrânia, agarrado ao dedo de sua mãe, com as pernas ainda inseguras mas com muita vontade de andar.

O menino passou toda sua vida no hospital. Recebeu o diagnóstico de câncer no nascimento, apenas um mês antes de as forças russas invadirem a Ucrânia, em fevereiro do ano passado.

"É como se a gente tivesse duas guerras para travar", comentou sua mãe, Anna Kolesnikova. "Duas guerras. Uma é para salvar a vida do meu filho, a outra é a guerra por nosso país."

Anna Kolesnikova leva seu filho Mikola Kolesnikov para passear do lado de fora de hospital infantil em Kiev
Anna Kolesnikova leva seu filho Mikola Kolesnikov para passear do lado de fora de hospital infantil em Kiev - Laura Boushnak - 1º.jul.23/The New York Times

Em toda a Ucrânia, famílias de crianças com câncer lidam com a doença e com o país mergulhado em guerra. Devido à invasão russa, muitas tiveram que deixar suas casas, conviver com o medo de ataques aéreos e a separação de seus entes queridos, incluindo os que estão nas Forças Armadas.

Apesar das dificuldades, especialistas dizem que o conflito contribuiu para o desenvolvimento da oncologia pediátrica ucraniana, graças à maior cooperação internacional num momento de crise.

Mas para famílias como os Kolesnikov, a guerra agravou o sofrimento. Mikola nasceu em Kherson, em janeiro de 2022, com um tumor maligno que distorcia seu rosto e pescoço e o deixara com apenas um olho são. Ele foi enviado ao hospital Infantil Ohmatdit, em Kiev, para passar por quimioterapia e cirurgia.

Mikola e sua mãe passaram meses abrigados no subsolo do hospital para que o menino pudesse continuar com o tratamento, mesmo quando Kiev era atacada.

Sua cidade natal, em Kherson, no sul, foi tomada pelas forças russas. Kolesnikova, 32, permaneceu em Kiev com o pequeno, enquanto seu marido, seu filho mais velho e seus pais continuam do outro lado da linha de frente —em outra ótica, pode parecer o outro lado do mundo. "Estou separada da minha família. Vivo constantemente preocupada com a vida de meu filho e a vida de meus pais e de meu outro filho."

Ela temeu o pior quando a barragem de Nova Kakhovka foi destruída no mês passado, inundando parte da região. Mas sua família saiu ilesa.

Sasha Batanov, que está sendo tratada de leucemia, brinca com Cassandra, cachorra de um especialista em habitação ambulatorial da instituição de caridade Tabletochki, em Kiev
Sasha Batanov, que está sendo tratada de leucemia, brinca com Cassandra, cachorra de um especialista em habitação ambulatorial da instituição de caridade Tabletochki, em Kiev - Brendan Hoffman - 21.jun.23/The New York Times

No início da guerra, muitas crianças com câncer foram levadas às pressas para outros países europeus ou ainda mais longe. Coordenadas com a Safer Ukraine em parceria com a St. Jude Global, as transferências garantiram que os tratamentos pudessem continuar sem interrupções.

"Recebemos muita atenção para salvar este grupo de crianças vulneráveis", disse o oncologista pediátrico Roman Kizima, 39, diretor interino do Centro Médico Infantil Especializado da Ucrânia Ocidental.

Desde então, disse Kizima, a abordagem dada ao tratamento do câncer infantil no país mudou. O enfoque tem sido construir a capacidade de atendimento no próprio país. Algumas crianças com necessidades complexas ainda estão sendo enviadas ao exterior, mas hoje a maioria permanece na Ucrânia.

Com nova coordenação com parceiros internacionais, vínculos crescentes com hospitais europeus, novas oportunidades de formação e mais especialistas dando atendimento no país, Kizima disse que espera ver a oncologia pediátrica reforçada na Ucrânia. "O nível está subindo e talvez fique ainda mais alto" em consequência da guerra, disse ele, apontando para a disponibilidade de mais tratamentos especializados em hospitais regionais desde que a guerra começou.

Muitos cânceres infantis são tratáveis, mas as perspectivas dependem de onde a criança é atendida. Nos países ricos, com mais acesso a tratamentos e medicamentos, mais de 80% das crianças com câncer sobrevivem por ao menos cinco anos. Nos países de renda baixa ou média, esse índice pode não chegar a 30%, segundo a Organização Mundial de Saúde.

Iulia Nogovitsina é diretora de programas da Tabletochki, entidade da Ucrânia voltada ao combate ao câncer infantil. Segundo ela, a organização estima que 60% das crianças são tratadas com êxito. "Ainda há uma disparidade entre a Ucrânia e os países de alta renda, e isso é algo que queremos eliminar."

Para algumas crianças, a guerra adiou seu diagnóstico e tratamento. Sasha Batanov, 12, estava em um hospital em Kharkiv, com fortes dores nas costas, em fevereiro de 2022, quando a invasão russa começou e a unidade foi esvaziada. Ele foi levado para casa e mantido ali por algumas semanas. "Estava tentando acalmá-lo", contou sua mãe, Nataliia Batanova. "Mas percebi que algo anormal estava acontecendo."

.Anna Kolesnikova espera ao lado de seu filho Mikola enquanto recebe tratamento no Hospital Infantil Ohmatdit, em Kiev
Anna Kolesnikova espera ao lado de seu filho Mikola enquanto recebe tratamento no Hospital Infantil Ohmatdit, em Kiev - Laura Boushnak - 6.jul.23/The New York Times

Eles ainda não sabiam, mas Sasha tinha leucemia. Se ele pudesse ter ficado no hospital, a doença teria sido diagnosticada antes. O câncer foi detectado só em julho, e Sasha, transferido a Kiev para fazer quimioterapia. Ele também precisou de um transplante de medula óssea, que recebeu em abril.

Por enquanto, Sasha, sua mãe e seu irmão vivem em Kiev enquanto ele continua o tratamento. Seu pai é soldado e combate no leste do país, aumentando o medo deles. Mas Batanova tem esperança. "Ficamos felizes por ter esta vida hoje, neste momento", disse. "É isso o que a guerra e esta vida nos ensinaram."

Tradução de Clara Allain

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