Marcelo Brodsky conecta traumas globais em mostra com intervenções em fotos

Exposição do artista argentino no Museu Judaico vai da violência alemã na Namíbia a Marielle Franco à la Andy Warhol

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Obra do artista argentino Marcelo Brodsky, uma intervenção sobre registro realizado durante a ditadura militar no Brasil, em 1968

Obra do artista argentino Marcelo Brodsky, uma intervenção sobre registro realizado durante a ditadura militar no Brasil, em 1968 Divulgação

São Paulo

Em poucos passos, o visitante do Museu Judaico percorrerá um trajeto que liga protestos antigoverno na Colômbia à marcha antirracista de Martin Luther King, a crise migratória no Mediterrâneo à ditadura militar na Argentina, o genocídio alemão na Namíbia à violência sofrida pela vereadora Marielle Franco.

Ainda que essa reunião de temas pareça um tanto aleatória, diferentes traumas dos séculos 20 e 21 se conectam com coesão na mostra que o argentino Marcelo Brodsky abre neste sábado (5), em São Paulo.

A retrospectiva exibe, sobretudo, as intervenções sobre fotos em preto e branco que se tornaram uma marca do artista. Brodsky, 68, cujas obras integram o acervo de museus renomados, do Reina Sofia, em Madri, à Pinacoteca, na capital paulista, adiciona às imagens anotações, descrições e comentários e também ressalta pedaços dos registros com giz de cera, canetas do tipo Posca ou outros materiais.

Obra do artista argentino Marcelo Brodsky faz intervenção sobre fotografia que retrata crise migratória no Mediterrâneo
Obra do artista argentino Marcelo Brodsky faz intervenção sobre fotografia que retrata crise migratória no Mediterrâneo - Divulgação

"Ele tem essa estratégia de apropriação, muitas vezes com fotografias jornalísticas", explica Márcio Seligmann-Silva, curador da exposição. "Brodsky faz intervenções coloridas e revela novamente a força de imagens que estão num contexto de informação e que, em geral, se esvaem em apenas um dia."

Em uma fotografia de um protesto durante o regime militar no Brasil, em 1968, com a presença de Leila Diniz, Odete Lara, Norma Bengell e outras atrizes, por exemplo, o argentino chamou a atenção para as mãos dadas das manifestantes, sinal de união frente ao autoritarismo da época. Na parede da exposição, fez uma graça, ao escrever, também com giz de cera, que "Regina Duarte não participou" do ato.

Em outra série, realizada em cima de fotos que expõem a violência de soldados alemães no então território da África do Sudoeste, atual Namíbia, Brodsky escreveu frases curtas, como "nós testamos os chuveiros", sobre imagens de duchas coletivas com pessoas negras amontoadas para tomar banho. A descrição seca de práticas brutais na voz do agressor dá à documentação um ar de admissão de culpa.

"Essas imagens foram feitas por soldados, colonos ou até missionários. Elas são a visão do colonizador", afirma Brodsky. "Mas esse trabalho subverte a visão do colonizador porque não é só a imagem neutra."

Outro registro, com a frase "nós testamos os trens", dá a senha para os elos que o artista faz entre esse genocídio no continente africano, entre 1904 e 1907, quando entre 75 mil e 100 mil pessoas foram mortas, e o Holocausto, parte da história da família do argentino, descendente de imigrantes judeus russos.

Dividida em três eixos —exílios, escombros e resistência—, a retrospectiva destaca também como a vida pessoal do artista serve de ponto de partida para elaborar alguns dos traumas globais retratados.

"A Classe", um dos trabalhos mais conhecidos do argentino, por exemplo, mostra 32 estudantes, entre os quais Brodsky, posando para um retrato escolar em 1967. Ali, ele escreve sobre a imagem o que aconteceu com cada um dos colegas, de destinos pacatos —Silvia virou fisioterapeuta— a trágicos, como Claudio, morto pelo Exército, e Martín, o primeiro dali a ser sequestrado. Brodsky, afinal, fala da ditadura argentina.

Num caminho inverso, no trecho mais instigante da mostra, o artista inicia um tríptico com o registro do ícone antirracismo Martin Luther King marchando ao lado do rabino Abraham Heschel, que, por sua vez, aparece na foto seguinte na biblioteca do Seminário Teológico Judeu, em Nova York. O conjunto termina com o líder religioso na Argentina, participando de sessão da Comissão Nacional de Desaparecidos.

Na parede em frente ao tríptico, Brodsky colocou fotografias do público presente naquele mesmo evento, com uma surpresa: sua mãe, Sara, estava ali, segurando a placa com o nome da Esma, a Escola de Mecânica da Armada, palco dos perversos voos da morte, em que opositores do regime eram atirados de aviões. O irmão do artista, Fernando, sequestrado e torturado pela ditadura, foi uma dessas vítimas.

Ao lado de Sara, outra ativista ergue uma placa com "Varsóvia", referência ao Gueto de Varsóvia, núcleo de resistência ao nazismo no Holocausto, conectando, outra vez, múltiplas tragédias num mesmo local, uma vez que refugiados fugiam do fascismo na Europa para ver seus filhos serem mortos na América do Sul.

Por isso, Brodsky, em outra obra, replica uma placa na Alemanha que lista campos de concentração e de extermínio nazistas. Mas em vez de Auschwitz e Dachau, ele coloca, em frente à sede da Esma, hoje um memorial, os nomes de centros de tortura na Argentina, como El Vesubio, La Perla e Pozo de Quilmes.

Além de fotos da ditadura no Brasil, o país aparece também por meio de Marielle Franco, vereadora do Rio morta a tiros em 2018. Na exposição, ela aparece em seu retrato mais conhecido, feito por Bernardo Guerreiro, mas à la Andy Warhol, replicada várias vezes por Brodsky em cores vibrantes, como na pop art.

"Há muitas Marielles, por isso usar a multiplicação. Ela virou um exemplo para muitas outras mulheres negras", diz o argentino. Os retratos de Marielle, batizados de "Semente", foram colocados perto do fim da exposição, e o visitante será forçado a deixar o espaço expositivo por uma saída que desemboca na lateral do Museu Judaico, feita de vidro, com vista para a avenida Nove de Julho, no centro paulistano.

Ali, o espectador verá "Semente" na rua, em uma reprodução de grandes proporções, como uma intervenção urbana. "Extrapolar o cubo branco, o espaço da mostra, é uma tendência da obra do Marcelo", afirma o curador Seligmann-Silva. "E essa obra é uma obra política, ela tem que dialogar com a sociedade."

Em uma dimensão menor, mas na mesma pegada, os portões do museu foram envelopados com estrelas de Davi montadas a partir de uma obra de Brodsky baseada nas ruínas da Amia, a Associação Mutual Israelita Argentina, alvo de atentado terrorista em 1994, maior cicatriz dos judeus na América Latina.

Essas "ruínomontagens", como o curador definiu esse processo, de certa forma resumem a tônica da retrospectiva: as diferentes crises, traumas e ruínas da humanidade, afinal, estão todas conectadas.

MARCELO BRODSKY: EXÍLIOS, ESCOMBROS, RESISTÊNCIA

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