Sylvia Colombo

Historiadora e jornalista especializada em América Latina, foi correspondente da Folha em Londres e em Buenos Aires, onde vive.

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Um avião com muita história desembarca em Buenos Aires

Aeronave usada nos 'voos da morte' da ditadura retorna à Argentina e pode virar trunfo de peronistas

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Em tempos em que há certos grupos na Argentina, ainda não majoritários, que relativizam ou contestam o fato de que houve um regime militar no país entre 1976 e 1983 e no qual morreram, segundo estimativas de órgãos de direitos humanos, 30 mil pessoas, novas evidências incontornáveis começam a surgir.

Uma delas desembarca em breve em Buenos Aires. Trata-se do avião Skyvan usado na frota que conduziu os tenebrosos "voos da morte". Adversários da ditadura, além de pessoas incômodas ao regime em geral, eram levadas ao Aeroparque de Buenos Aires na calada da noite. Sedadas e amarradas a pedras, eram colocadas em aviões e, num sobrevoo pelo rio da Prata, atiradas na água para que afundassem.

Manifestantes carregam cartazes com fotos de pessoas desaparecidas durante a ditadura militar argentina durante ato na Praça de Maio, em Buenos Aires
Manifestantes carregam cartazes com fotos de pessoas desaparecidas durante a ditadura militar argentina durante ato na Praça de Maio, em Buenos Aires - Luis Robayo - 24.mar.23/AFP

Uma investigação que durou dez anos e envolveu um fotógrafo, uma jornalista e ex-prisioneira da ESMA (Escola de Mecânica da Armada) e um ator e ex-piloto localizou o Skyvan em Fort Lauderdale, nos EUA, em 2013. Ele ainda vinha sendo usado para levar correspondências e encomendas ao Caribe.

Os documentos encontrados no avião permitiram revelar que trajetos fez e os nomes dos pilotos envolvidos, agora condenados e presos devido à descoberta da aeronave.

Por fim, o veículo foi comprado por meio de uma iniciativa de familiares, ativistas e com a ajuda do governo. Ele ficará na própria ESMA, hoje um museu para preservar a memória daqueles tempos.

O retorno do avião ocorre em um momento oportuno na Argentina. A dois meses das primárias presidenciais, há um peronismo castigado e dividido em razão da atual crise econômica.

Para alguns de seus pré-candidatos, o Skyvan pode trazer créditos para a campanha. É o caso do atual ministro da Economia, Sergio Massa, que conseguiu fazer com que o governo pusesse dinheiro no projeto.

Para a ultradireita, representada pelo provocador Javier Milei, o Skyvan lhe dará argumentos para seguir com o discurso de que os peronistas "gastam muitos recursos nos direitos humanos do passado".

Já para a direita tradicional, liderada pelo ex-presidente Mauricio Macri, o Skyvan faz lembrar o episódio em que ele relativizou o número de desaparecidos da ditadura, causando furor e polêmica numa sociedade dividida. A relativização da ditadura começou a ganhar força durante sua gestão, de 2015 a 2019.

De todo modo, ter o Skyvan à vista de todos num local muito próximo àquele de onde levantava voo e descarregava pessoas para o fundo do rio é bastante simbólico —e educativo do que foi aquela época.

No Skyvan, por exemplo, foi embarcado um grupo hoje muito conhecido de ativistas e parentes de vítimas. Em dezembro de 1977, foram sequestrados e levados a um voo da morte a fundadora das Mães da Praça de Maio, Azucena Villaflor, e as freiras francesas Léonie Duquet e Alice Domon.

A história está contada no livro "El Infiltrado", do historiador Uki Goñi (sem edição no Brasil). Os voos da morte ficaram mais conhecidos com o já clássico "El Vuelo", de Horacio Verbitsky, e em filmes como o impactante "Garage Olimpo", de Marco Bechis (1999), e o mais recente "Kóblic" (2016), no qual Ricardo Darín encarna um piloto de voos da morte que se arrepende de fazer parte do cruel esquema.

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