Mulheres chefiam só 16% dos postos diplomáticos e apontam 'teto de vidro' no Itamaraty

Ministro reconheceu sub-representação e anunciou política de diversidade, mas cenário é de estagnação e até de retrocessos

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São Paulo

Apenas 34 dos 213 postos diplomáticos do Brasil espalhados pelo mundo atualmente são chefiados por mulheres (16%), enquanto os outros 179 têm homens no comando (84%).

Quando consideradas especificamente as embaixadas, só 18 das 133 estão sob liderança feminina (13,5%).

Análise da Folha mostra estagnação e até retrocessos nesse tema, pouco mais de um semestre depois do discurso de posse do ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, no qual ele reconheceu a "sub-representação crônica" e anunciou uma política de diversidade no Itamaraty.

Maria Luiza Viotti entrega credenciais ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden; ela é uma das duas únicas brasileiras a chefiar embaixadas do mais alto nível hoje
Maria Luiza Viotti entrega credenciais ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden; ela é uma das duas únicas brasileiras a chefiar embaixadas do mais alto nível hoje - Casa Branca/Divulgação

Dados oficiais reforçam a queixa da Associação de Mulheres Diplomatas do Brasil (AMDB), fundada no início do ano, de que há um "teto de vidro" no órgão: segundo o grupo formado por dois terços das servidoras na ativa, elas enfrentariam uma barreira invisível para chegar aos cargos mais altos.

Em janeiro, a embaixadora Irene Vida Gala, presidente da associação, disse à Folha que a expectativa era de progresso significativo nos seis primeiros meses de governo, a tempo para as promoções seguintes.

Passado o período, ela avalia não ter havido avanços. "É uma pena que ainda não tenha sido identificada por parte da alta chefia a importância de se estabelecer esse diálogo."

O debate voltou à tona com a nomeação de Maria Luiza Viotti, em 29 de maio, como primeira embaixadora do país em Washington (Estados Unidos).

Se por um lado a escolha foi ao encontro das promessas do chanceler, por outro evidenciou a raridade desse tipo de indicação —antes, Maria Laura da Rocha já havia assumido a secretaria-geral do Itamaraty, tornando-se a primeira mulher a ocupar a segunda posição mais importante na hierarquia do órgão.

Viotti e Claudia Buzzi (Suíça) são as únicas diplomatas a chefiar embaixadas do mais alto patamar, num total de 15 postos do grupo A.

Outras três comandam missões nesse nível de maior prestígio: Paula Souza (Unesco), Claudia Santos (Agência Internacional de Energia Atômica) e Carla Carneiro (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura).

A disparidade de gênero no Itamaraty é histórica e pode ser vista desde a entrada no Instituto Rio Branco —a escola que forma os diplomatas do Brasil— até a aposentadoria.

As mulheres representam 23% do quadro atual de diplomatas. Essa proporção diminui progressivamente da base até o topo, considerando os cargos hierárquicos da carreira: de 26% no nível de secretário para 20% entre os ministros de segunda e primeira classes.

O funil fica mais apertado nas funções designadas. Além de Viotti e Buzzi nas embaixadas do grupo A, o Brasil tem duas representantes em países da categoria B. Outras cinco estão na C e nove (ou metade do total) trabalham na D, a mais baixa, em locais como Burkina Fasso, Guiné-Bissau e Mianmar.

Considerando também os postos multilaterais do nível A além das embaixadas, como a delegação na Unesco, a presença feminina é de 18,5% nas posições diplomáticas de maior prestígio.

A classificação leva em conta "a representatividade da missão, as condições de vida na sede e a conveniência da administração".

Até o momento, o Senado aprovou 27 designações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para chefias no exterior. Além de Viotti, a única mulher na lista é Silvana Polich, indicada para a embaixada na Croácia.

A proporção é menor que a registrada no início da gestão Jair Bolsonaro (PL), quando foram nomeadas três diplomatas em um total de 18, entre janeiro e agosto de 2019.

"Houve também involução no segundo escalão", diz Vida Gala, referindo-se às 12 secretarias da pasta no Brasil, chefiadas hoje por dez homens e duas mulheres. "Isso não corresponde aos compromissos do novo governo."

Em carta aberta enviada recentemente ao chanceler, Vida Gala defendeu a reserva de vagas no concurso do Rio Branco para "solucionar a questão de forma perene", argumentando que "a representação é uma das funções da diplomacia" —segundo o IBGE, 51% da população é composta por mulheres.

Nos últimos dez anos, as turmas tiveram entre 11% e 37% de alunas. Projeção com dados do Rio Branco desde 1946 sugere que, no ritmo registrado até agora, a paridade na entrada seria alcançada por volta de 2089.

Já na porta de saída, o quadro de aposentados da administração federal revela que 58,6% das diplomatas mulheres terminaram a carreira nos cargos mais baixos (secretária ou conselheira), enquanto 80,1% dos homens alcançaram as posições superiores (ministro de primeira ou segunda classes).

Pesquisa da Universidade de Gotemburgo (Suécia) sobre o número de embaixadoras pelo mundo mostra o Brasil na 106ª colocação proporcional entre as 162 nações com ao menos 20 representações externas, próximo a países como Tunísia, Moçambique, Camboja, Congo, Mongólia e Guiné Equatorial (13% a 14%).

"Nossa manifestação não desabona as qualidades dos homens indicados. Questiona, porém, por que às mulheres, com a mesma qualificação, não são dadas as mesmas oportunidades", diz a AMDB em nota divulgada em junho, depois das primeiras levas de designações do novo governo.

À Folha, o Itamaraty argumenta que a menor presença de mulheres nos cargos hierárquicos superiores pode ser explicada em parte por uma "opção" das diplomatas.

"Por diversas razões, alguns servidores (homens e mulheres) podem optar por não apresentar a tese e finalizar a carreira na categoria de conselheiro", diz o órgão, em referência ao Curso de Altos Estudos, requisito para a ascensão a ministro de segunda classe.

"O último ciclo de promoções pautou-se pelo fortalecimento da diversidade [...] Promoveu-se uma proporção de mulheres maior que a de homens quando considerado o total de aptos", acrescenta a nota.

A pasta também afirma que cerca de 85% das ministras de primeira classe exercem alguma função de liderança e 29% das unidades na sede do Itamaraty são chefiadas por mulheres, como "divisões, coordenações, departamentos e secretarias".

Sobre os postos no exterior, o órgão reconhece que o número de mulheres em chefias "pode ser melhorado nos próximos anos", enfatizando que a designação parte da Presidência e requer aprovação do Senado.

O Itamaraty informa ainda que "criou um canal institucionalizado de diálogo" como parte de uma política de inclusão estabelecida em abril. "Espera-se que os comitês possam auxiliar a elaboração de medidas que aumentem a diversidade e revertam esse quadro de sub-representação crônica."

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