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Por que africanos queimam bandeiras da França e gritam 'Rússia'

Com apoio militar e financeiro, somado a uma campanha de desinformação, nações da África se aproximam de Putin

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Países africanos têm renunciado à cooperação com a França e se voltado para a Rússia, em meio a uma campanha de desinformação nas redes sociais. Logo após o golpe de Estado no Níger, manifestantes a favor dos militares golpistas foram vistos queimando bandeiras francesas e gritando "Rússia, Rússia" ou "Viva Putin" em frente à embaixada francesa em Niamei.

As imagens chamaram a atenção para um desenvolvimento que não tem recebido a atenção que merece na imprensa ocidental: a crescente presença e influência da Rússia em vários países africanos.

Nos últimos anos, alguns países renunciaram à cooperação com a França, a quem acusam de interferir em assuntos internos. Nações africanas passaram a apoiar a Rússia, que lhes fornece armas ou grãos.

Manifestantes com bandeira russa na capital Niamei em apoio ao golpe militar no Níger
Manifestantes com bandeira russa na capital Niamei em apoio ao golpe militar no Níger - Souleymane Ag Anara - 30.jul.23/Reuters

O Níger, se os golpistas se impuserem, seria apenas o exemplo mais recente de um país na região do Sahel que passou por um golpe de Estado depois de 2020 e em seguida se voltou para a Rússia. Mali e Burkina Faso também são comandados por juntas militares.

O Sahel é uma extensa faixa de território que atravessa horizontalmente o continente africano, de ponta a ponta, e passa por países como Burkina Faso, Chade, Mauritânia, Mali, Níger e Nigéria. Trata-se de uma das regiões mais pobres do continente, assolada por conflitos e com forte presença de grupos terroristas.

O Níger foi uma colônia francesa desde o início do século 20 até 1960, quando se tornou um país independente. Hoje é um dos principais fornecedores de urânio para as usinas nucleares francesas, com cerca de um terço do total num país onde 70% da eletricidade é gerada por reatores atômicos.

Para muitos africanos, o passado colonial pesa contra a França. E a isso se une, no período pós-colonial, o frequente apoio do Eliseu a autocratas africanos.

Além disso, muitas pessoas na África percebem o presidente da França, Emmanuel Macron, como arrogante, o que certamente não melhora a imagem francesa.

Apesar da percepção de arrogância que o acompanha, deve ser dito que poucos líderes franceses empreenderam tantos esforços para melhorar a imagem da França na África como Macron.

Num gesto pouco comum para líderes franceses, ele viajou até Ruanda para reconhecer que a França teve grande responsabilidade no genocídio de 1994, que deixou cerca de 800 mil mortos.

Macron elevou a ajuda financeira ao continente, começou a devolver obras de arte roubadas na época colonial e deu apoio militar para combater militantes jihadistas que já mataram inúmeros civis na África.

Combate ao terrorismo

Desde 2013, quase 5.000 militares franceses foram enviados para combater grupos jihadistas no Mali, em Burkina Faso, no Chade, no Níger e na Mauritânia. Em agosto de 2022, mais de nove anos depois de serem recebidos no Mali como "salvadores", os 2.400 soldados franceses concluíram sua retirada do país, ordenada por Macron devido à deterioração das relações com a junta militar no poder em Bamako e perante a crescente hostilidade da opinião pública local em relação à França.

Dois meses depois, foi a vez de os cerca de 400 militares franceses em Burkina Faso deixarem o país.

Do contingente inicial, a França mantém 2.500 soldados na região, divididos entre o Chade e o Níger, para combater os grupos armados terroristas no Sahel. A saída dos soldados franceses costuma ser seguida de uma aproximação com o Grupo Wagner, como no caso do Mali, onde a junta militar no poder em Bamaco fez um acordo com os mercenários russos para apoiar o seu exército.

Operação em redes sociais

A Rússia sabe fazer uso dos sentimentos anti-franceses na África. Uma recente investigação da empresa britânica Logically mostrou que uma ampla atividade de desinformação em redes sociais tem ajudado a promover posições pró-russas no continente. Postagens típicas acusam a França de neocolonialismo, elogiam o presidente Vladimir Putin e os mercenários do Grupo Wagner e promovem a já conhecida desinformação sobre o governo da Ucrânia, chamado de "nazista".

A rede, que opera no Facebook, no YouTube e no Telegram e é chamada de Russosphère, está ligada a um ativista político belga de extrema direita, Luc Michel. Segundo os pesquisadores da Logically, é uma startup especializada em analisar e combater desinformação.

A Russosphère, que se define como "uma rede em defesa da Rússia", ganhou força no início de 2022, pouco depois da invasão da Ucrânia por Moscou. "A maioria das operações de Michel na África promove o pan-africanismo e sentimentos anti-colonialistas como um ponto de convergência para apoiar a tese central de Michel: de que países africanos sairiam ganhando caso se distanciassem dos colonizadores europeus e desenvolvessem fortes relações com a Rússia", escrevem os pesquisadores da Logically.

A argumentação é bem-sucedida em vários países africanos porque se apoia em sentimentos reais e disseminados entre a população. "É absolutamente razoável assumir que a maioria das pessoas no Níger são pró-Rússia no atual momento", comentou Abiol Lual Deng, especialista em Sahel, em entrevista à DW.

Ela observa ainda que Putin defende valores sociais conservadores que têm apelo entre muitos africanos.

Cúpula em São Petersburgo

Além das bandeiras francesas queimadas e dos gritos a favor da Rússia, os esforços da Rússia por maior influência também puderam ser vistos na recente Cúpula Rússia-África 2023, em São Petersburgo.

No encontro, o líder golpista de Burkina Faso e proclamado "presidente de transição", Ibrahim Traoré, descreveu a Rússia como uma "família" em virtude "da história compartilhada na luta contra o nazismo" e diante dos resquícios de colonialismo que ainda restam no continente.

Burkina Faso, país governado por uma junta militar após o golpe de janeiro de 2022 contra o então presidente Roch Marc Christian Kaboré, tem registrado insegurança crescente desde 2015.

A junta militar agora chefiada por Traoré protagonizou um motim em setembro, na prática um golpe palaciano contra o até então líder, Paul-Henri Sandaogo Damiba.

Já o líder interino do Mali, o coronel Assimi Goita, agradeceu a Putin pela ajuda militar. "O Mali tem uma aliança militar com a Rússia. Agradecemos seu apoio e amizade. Graças à Rússia, pudemos fortalecer nossas Forças Armadas e nossos serviços de segurança", afirmou Goita durante seu discurso na cúpula.

Ele salientou que a Rússia tem demonstrado ser "uma parceira de confiança" que "respeita a soberania do Mali" e frisou que o país se tornou "independente e autossuficiente", cujo Exército pode defender sua "integridade territorial". Desde que os mercenários do Grupo Wagner chegaram ao Mali, em dezembro de 2021, as mortes de civis aumentaram 278%, segundo o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken.

O Mali vive uma profunda crise política e de segurança desde 2012, quando grupos rebeldes e jihadistas assumiram o controle do norte do país, que se degradou após os dois golpes de Estado ocorridos em agosto de 2020 e maio de 2021. Na cúpula em São Petersburgo, Putin anunciou que seu país assinou contratos de armas com mais de 40 nações africanas. Ele ressaltou que parte do fornecimento de armas a esses países é feito gratuitamente, já que o objetivo final é "garantir a segurança e soberania deles".

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