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Crise entre Índia e Canadá escancara Modi como 'elefante na sala' do Ocidente

Tendência autoritária do premiê indiano é cada vez mais difícil de ser ignorada por aliados

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John Reed Demetri Sevastopulo Jaren Kerr
Nova Déli, Washington e Nova York | Financial Times

Índia e Canadá vivem atualmente uma crise diplomática aguda, após acusações, feitas pelo premiê canadense, Justin Trudeau, de que o governo indiano está envolvido na morte de Hardeep Singh Nijjar, um separatista sikh e cidadão canadense assassinado a tiros nos subúrbios de Vancouver, em junho.

As acusações esquentavam nos bastidores já na última cúpula do G20, realizada em Nova Déli, onde Trudeau levantou a questão em particular com Modi. O líder canadense ainda não revelou as evidências que sustentam as acusações.

Depois que Trudeau levou a público as suspeitas, Canadá e Índia expulsaram diplomatas e Nova Déli parou de fornecer vistos para cidadãos de um país com uma das maiores diásporas indianas do mundo, com cerca de 700 mil cidadãos indianos e mais 1,6 milhão de pessoas de ascendência indiana. Ambas as nações afirmaram na quinta-feira (21) que seus diplomatas nos respectivos países enfrentavam ameaças à segurança. A Índia rejeitou as acusações do Canadá de envolvimento no assassinato como "absurdas".

O Primeiro Ministro da Índia, Narendra Modi, fala com a imprensa em Nova Délhi
O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, fala com a imprensa em Nova Déli - Adnan Abidi - 18.set.23/Reuters

Mas algo maior do que as relações bilaterais entre dois membros do G20 está em jogo: a aposta geopolítica de que os EUA, Reino Unido, Austrália e outros países estão tratando a Índia como um aliado democrático que também se opõe à China.

A Índia está se tornando um dos parceiros estrangeiros mais importantes dos Estados Unidos como uma fortaleza contra a China. Washington investiu pesado no fortalecimento das relações com Nova Déli como parte de sua estratégia mais ampla de melhorar os relacionamentos na região do Indo-Pacífico. O impulso acelerou este ano, com parcerias abrangendo áreas desde defesa e manufatura de alta tecnologia até inteligência artificial. Biden concedeu a Modi a alta honra diplomática de um jantar de Estado na Casa Branca em junho.

Quando e se surgirem evidências que possam apoiar a acusação do Canadá, Washington terá de buscar um equilíbrio entre seu vizinho mais próximo e um aliado em ascensão significativa.

Outros aliados estão em uma situação semelhante. O Reino Unido está em estágios avançados de negociação de um de seus maiores acordos comerciais pós-Brexit com Nova Déli. A Índia é o maior importador de armas do mundo, e Emmanuel Macron, da França, agora o segundo maior fornecedor de armas da Índia, convidou Modi como seu convidado de honra no desfile do Dia da Bastilha em julho. A Índia é membro da iniciativa estratégica de segurança Quad, que também inclui Austrália, EUA e Japão.

Esses países têm depositado grande parte de sua aposta geopolítica não apenas na Índia, mas na pessoa de Modi.

Durante nove anos no cargo, o premiê indiano construiu uma base política forte e buscou projetar maior poder no exterior, inclusive com suas operações de inteligência. Mas Modi e figuras-chave de seu partido Bharatiya Janata (BJP) também foram acusados por críticos de fomentar o sectarismo, minar os valores seculares da Índia e prejudicar ou visar jornalistas e grupos da sociedade civil —ações que levaram alguns de seus parceiros a questionar seus padrões democráticos.

Os aliados democráticos ocidentais da Índia em sua maioria mantiveram seus comentários sobre essas preocupações em separado, em breves observações ou a portas fechadas, no interesse mais amplo de solidificar um relacionamento estratégico. Mas se o que diz o Canadá sobre um assassinato extraterritorial apoiado pelo Estado indiano forem comprovadas, eles terão dificuldade em ficar em silêncio.

"Estou preocupado que, se o imbróglio entre Índia e Canadá continuar a se intensificar, poderemos ver nações ocidentais começarem a escolher lados, e é provável que seja Ottawa [que vença], colocando em maior perigo as parcerias de Nova Déli com países como EUA, Austrália e Reino Unido", diz Derek Grossman, analista sênior de defesa da Rand Corporation. "A justificativa seria que Modi e seu governo do BJP são simplesmente inconfiáveis."

Uma cisão mais ampla também ameaçaria a lenta aproximação da Índia à órbita dos EUA à medida que as tensões com a China se intensificam. Isso "não seria um bom resultado para todos os envolvidos", acrescenta Grossman, "especialmente diante do pano de fundo de uma China cada vez mais assertiva no Indo-Pacífico e globalmente".

Tornando os desafios ainda mais tensos, a opinião pública indiana em sua maioria se uniu em apoio a Modi, exigindo evidências do Canadá para apoiar as imputações.

Muitos indianos são especialmente sensíveis a críticas estrangeiras, mas as acusações de Trudeau surge em um momento excepcionalmente delicado, dias após o momento considerado brilhante da Índia no G20 e meses antes de uma eleição geral na qual Modi estará fazendo campanha em parte por seus esforços para elevar a posição internacional do país.

Os parceiros ocidentais da Índia devem considerar as "razões sólidas" pelas quais ela é uma aliada valorizada, diz Nirupama Menon Rao, ex-secretária de Relações Exteriores da Índia e ex-embaixadora nos EUA e na China. "A Índia mostrou ser uma parceira sólida, confiável, e tem muitos atributos que tornam o relacionamento importante para o restante das democracias. Isso não deve ser tratado com desprezo."

Para o Canadá, as apostas não poderiam ser maiores: agora está em desacordo com os dois países mais populosos do mundo. Já tinha uma relação ruim com a China, que é o foco principal de uma investigação pública lançada neste mês sobre interferência estrangeira nas eleições recentes.

Por sua vez, a Índia há muito acusava o Canadá de abrigar extremistas sob o pretexto de liberdade de expressão, incluindo separatistas sikh que realizaram protestos do lado de fora das representações indianas e ameaçaram diplomatas do país no Canadá.

Uma ruptura nas relações com a Índia pode ser custosa. O comércio bilateral de bens e serviços entre o Canadá e a Índia ultrapassa US$ 16 bilhões, e os fundos de pensão canadenses investiram mais de US$ 55 bilhões na Índia, de acordo com a alta comissão indiana em Ottawa. O governo Trudeau congelou as negociações de um acordo de livre comércio com Nova Déli após a cúpula do G20, um dia útil antes de tornar públicas as imputações sobre a morte de Nijjar.

"O Canadá está em uma posição difícil aqui", diz Vincent Rigby, ex-conselheiro de segurança nacional de Trudeau. "Eu não acho que eles tiveram escolha a não ser se manifestar. No final, se outro país faz isso em seu território, você tem que responsabilizá-los, mas o Canadá não tem muitas cartas na manga. Eu acho que a Índia tem todas as cartas."

Os aliados ocidentais do Canadá inicialmente foram cautelosos em sua resposta. O secretário de Relações Exteriores do Reino Unido, James Cleverly, disse que o Reino Unido havia entrado em contato com o governo canadense sobre as "acusações graves". A Austrália disse que levantou a questão com Nova Déli.

A administração Biden enfrentou perguntas sobre o motivo de não ter sido mais vocal no rescaldo da acusação explosiva de Ottawa. Na manhã seguinte à revelação, a Casa Branca disse estar "profundamente preocupada" com a situação.

Mas à medida que esta semana avançava, a Casa Branca foi forçada a se posicionar mais firmemente em apoio ao Canadá. Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional, disse na quinta-feira que nenhum país recebe uma "isenção especial" para o tipo de ações de que Trudeau falou. "Independentemente do país, nós nos levantaremos e defenderemos nossos princípios básicos", disse Sullivan.

As acusações, no entanto, criaram desconforto para a administração ao reviver perguntas que foram feitas quando Modi visitou Washington em junho sobre por que ele não estava adotando uma postura mais firme em relação aos direitos humanos na Índia.

Essas preocupações têm perseguido Modi por quase duas décadas. Até ser eleito primeiro-ministro, um visto para visitar os EUA lhe foi negado devido a sua suposta falha em conter a violência em Gujarat quando era chefe do governo local.

Mas Lisa Curtis, especialista em Índia do think-tank CNAS, diz não acreditar que as acusações terão um impacto de longo prazo nas relações entre EUA e Índia porque a administração Biden investiu muito em aprimorar seu relacionamento com Nova Déli sob Modi.

"Somente se o primeiro-ministro Trudeau apresentar evidências críveis do envolvimento indiano, Biden poderá responder", diz Curtis. "Mesmo assim, a equipe de Biden, que vê a Índia principalmente através de uma lente da China, buscaria limitar as consequências e manter as relações em um nível relativamente equilibrado."

Embora Trudeau tenha sido vago sobre quais informações possui, a emissora estatal do Canadá, CBC, citando fontes governamentais não identificadas, informou na quinta-feira que autoridades haviam "reunido inteligência humana e via interceptações" em torno da morte de Nijjar por meses, incluindo comunicações envolvendo autoridades indianas. O governo também buscou a cooperação de Nova Déli na investigação antes de fazer suas acusações, disse a CBC.

Enquanto os aliados estrangeiros da Índia pesam suas palavras, não há sinal de qualquer repercussão doméstica para Modi. Na sexta-feira, os canais de notícias indianos, muitos dos quais geralmente adotam uma linha nacionalista e pró-Modi, passaram para outras histórias, incluindo imagens de mulheres aplaudindo o primeiro-ministro no parlamento do país depois que o governo obteve amplo apoio na quinta para um projeto de lei que reserva um terço dos assentos para deputadas.

"Isso destaca as tensões inerentes na parceria crescente entre o Ocidente e a Índia", diz Hervé Lemahieu, diretor de pesquisa do Lowy Institute da Austrália. "Ainda existem grandes diferenças entre como o Ocidente vê o mundo e como a Índia vê o mundo, e isso continuará sendo uma fonte de tensão nos próximos anos."

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