Pilhagem do rio de San José de Uré foi última investigação do jornalista colombiano Rafael Moreno

Um ano após sua morte, consórcio de imprensa Forbidden Stories retoma sua apuração sobre a extração de recursos de um rio que poderia beneficiar políticos

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Forbidden Stories, Cuestión Pública e France 24

José Bula Moreno, estudante de direito de 23 anos, era adolescente quando soube que queria seguir a carreira política. Há quatro anos, ele vem se preparando para as eleições regionais em sua cidade natal, Puerto Libertador, um pequeno município no norte da Colômbia. O segundo turno, ainda este mês, decidirá se ele conquista uma vaga no conselho municipal.

Enquanto isso, Espedito Duque, 57, figura política local da oposição, com mais de uma década de experiência, busca um retorno político e concorre a um segundo mandato.

Apesar das origens distintas desses candidatos, as eleições ocorrerão sob a sombra de um homem: o jornalista Rafael Moreno, cujo assassinato, em 16 de outubro de 2022, por um atirador local, completa um ano neste mês.

José Bula, sobrinho de Moreno, agora utiliza sua plataforma política para honrar o legado do homem que ele considerava como um pai. "Não há um discurso que eu faça sem mencioná-lo", diz. "É inconcebível esquecer o bem que ele fez pela nossa cidade."

Homem jovem de chapéu ao lado de uma sepultura
José Bula Moreno ao lado da sepultura de Rafael Moreno - Claudia Julieta Duque

Conhecido pelos moradores como "a voz do povo", Moreno fazia a cobertura da região de Córdoba, no norte da Colômbia, investigando corrupção e crimes ambientais, apesar das ameaças persistentes. Um dos alvos mais arriscados das investigações de Moreno era Duque, o candidato a prefeito e líder do clã mais poderoso da cidade, o clã Duque.

No início de outubro de 2022, Moreno entrou em contato com a organização Forbidden Stories para armazenar seu trabalho na Safebox Network, um sistema projetado para proteger as informações mais sensíveis dos jornalistas. Se um jornalista for morto, sequestrado ou preso, a Forbidden Stories e seus parceiros de mídia podem continuar seu trabalho e publicar suas descobertas.

Capa reportagem projeto Forbidden Stories
Investigação de consórcio jornalístico apura assassinato de jornalista colombiano e caso de corrupção local - Divulgação

Ele havia ligado para a Forbidden Stories de San José de Uré, onde descobriu que empresas estavam explorando recursos materiais da bacia do rio Uré sem qualquer permissão ou licença. Moreno foi assassinado nove dias depois.

Apesar dos investigadores encarregados do caso terem acesso a fotos do assassino contratado que matou Moreno (publicadas pela primeira vez pela Forbidden Stories), a investigação criminal do assassinato de Moreno parece estar estagnada e, até o momento, ninguém foi preso. Muitos dos jornalistas da região pararam de fazer reportagens investigativas por medo de retaliação; alguns fugiram do país.

No dia seguinte ao assassinato de Moreno, a Forbidden Stories e seus parceiros iniciaram uma colaboração com 30 jornalistas para dar continuidade ao trabalho de Moreno. Na primeira parte do Projeto Rafael, o consórcio descobriu um sistema de favorecimento na concessão de contratos públicos no valor de mais de 3 milhões de euros (R$ 16 milhões) durante a administração de Duque.

De 2016 a 2022, as administrações de Duque e Eder John Soto assinaram 99 contratos com 13 empresários próximos ao clã Duque. Nenhuma investigação oficial foi aberta contra Duque, que é um dos homens no centro desse sistema de favorecimento, de acordo com fontes da Forbidden Stories.

Agora, na segunda parte deste projeto, um ano após o assassinato de Moreno e duas semanas antes das eleições locais, Forbidden Stories e Cuestión Pública retomaram a última grande investigação de Moreno.

Por meio de documentos e depoimentos, o consórcio conseguiu confirmar a hipótese de Moreno de que recursos naturais estavam sendo extraídos ilegalmente do rio de San José de Uré, apontando para vários políticos de alto escalão na região de Córdoba.

Um rio esvaziado de areia

Em janeiro de 2020, Moreno visitou San José de Uré, uma pequena cidade aos pés do Parque Natural Paramillo, no norte da Colômbia, onde grande parte da população vive da agricultura e da pesca, para fazer reportagem sobre a indústria do turismo.

Em um vídeo filmado durante a visita, com música de acordeão ao fundo, Moreno aparece em frente a uma praia, elogiando os vales cristalinos: "Como vocês podem ver, as pessoas vêm aqui para se divertir, curtir uma refeição com a família e amigos", disse ele.

No entanto, apesar de sua atraente temporada de verão e aparente calma, a cidade, com pouco menos de 15 mil habitantes, registrou 62 homicídios em 2019. San José de Uré é controlada pelo chamado clã do Golfo, um dos grupos armados mais ferozes da Colômbia e responsável pela maioria dos crimes na região.

Dois anos após a visita de Moreno, ele recebeu informações de moradores locais: escondidas por trás da beleza cativante da cidade, estavam ocorrendo extrações ilegais. Moreno partiu para investigar: viajou ao longo do rio várias vezes, entrevistando moradores e filmando o incessante tráfego de caminhões —veículos carregados de areia extraída da bacia do rio.

Em um vídeo gravado durante uma das várias viagens que realizou em 2022, Moreno condenou a exploração generalizada e "ilegal" de sedimentos e areia do rio nos arredores de San José de Uré, uma vila com cerca de 12 mil habitantes.

"Há quatro ou cinco escavadeiras trabalhando dia e noite [para extrair recursos do rio]. É um desastre", disse ele durante sua última ligação com Forbidden Stories. "Eles estão causando danos irreparáveis à bacia, que faz parte do patrimônio cultural e natural de nossa região", afirmou.

Moreno e seus colegas filmaram vários vídeos nos locais de extração, documentando escavadeiras danificando o rio e transformando suas margens em um canteiro de obras. Eles compartilharam as imagens nas redes sociais, onde circularam amplamente.

Caminhão e escavadeira na beira de um rio
Extração ilegal de recursos naturais de rio em San José de Uré, na Colômbia, em foto tirada em 14 de setembro de 2022 por uma fonte anônima - Arquivo pessoal

Durante entrevistas de acompanhamento realizadas pela Forbidden Stories na região, moradores descreveram os danos causados pela extração em sua subsistência.

Felix Peñate Amor é um líder social —termo que se refere a ativistas de direitos humanos e líderes comunitários— de Versalles, ao sul de San José de Uré. Sua família é uma das aproximadamente cem que vivem na vila e dependem do rio como principal fonte de renda e alimento.

"Quase todos nós somos pescadores e agricultores", disse Peñate Amor à Forbidden Stories. "O nível do rio diminuiu significativamente desde que os caminhões começaram a passar, nos deixando sem água." A água, acrescentou, ficou contaminada.

Os óleos e lubrificantes dos motores dos caminhões permanecem dentro e ao redor do rio, e as escavadeiras turvam com sedimentos as águas outrora cristalinas. "Não podemos mais beber; é quase como lama", disse Peñate Amor.

À medida que investigava, Moreno foi ficando convencido de que essa mistura de pedras e areia saqueadas do rio Uré estava sendo usada para construir estradas ao redor da vila. Moreno formulou a hipótese de que algumas empresas responsáveis pela infraestrutura viária estavam utilizando os recursos do rio para reduzir os custos de construção.

Ele enviou pedidos de informações públicas à prefeitura de San José de Uré e ao órgão regional de gestão ambiental, chamado CVS, um processo que concede acesso a documentos administrativos internos.

Em outubro de 2022, Moreno, que também se tornara um líder social em sua região, e um colega apresentaram uma denúncia criminal ao Ministério Público de Córdoba. Eles denunciaram a "exploração ilegal de depósitos minerais e outros materiais" e pediram uma investigação urgente "para salvaguardar o meio ambiente, as finanças públicas, a saúde e a segurança viária dos habitantes do município de San José de Uré".

Dez dias depois, Moreno estava encerrando o trabalho no Rafo Parrilla —um restaurante de fast-food onde trabalhava por meio período para sustentar sua esposa e três filhos— quando um atirador entrou e o matou.

Extração selvagem

Em uma noite de maio de 2023, Yamir Pico, primo de Moreno que havia colaborado em sua investigação, estava sozinho em seu apartamento em Montelíbano, uma cidade de Córdoba. Seus seguranças haviam acabado de sair quando ele ouviu um grito.

Dois pistoleiros haviam arrombado sua porta e apontavam armas em sua direção. "Um deles me disse: 'Não queremos matar mais jornalistas, mas da próxima vez que você se envolver com o caso de San José de Uré, você estará morto'", relatou Pico à Forbidden Stories.

Os homens confiscaram seu equipamento de trabalho, incluindo seu computador, anotações e duas chaves USB que Moreno havia lhe dado antes de seu assassinato. Dois dias depois, Pico fugiu do país com sua família e agora vive nos Estados Unidos.

Pico fazia parte de um pequeno grupo de jornalistas, líderes locais e ambientalistas que trabalhavam com Moreno, fornecendo informações e conhecimento local, e que desde então tiveram que fugir ou abandonar seu trabalho. Pico havia publicado suas descobertas no Caribe Noticias 24/7, um site que cobre notícias locais.

"Não há assunto mais perigoso", disse Walter Álvarez, jornalista e amigo de Moreno. Álvarez também participou da investigação, acompanhando Moreno em suas viagens para fazer reportagens. Em agosto de 2023, o filho mais velho de Álvarez, de 22 anos, foi morto na cidade de Salgar, no departamento de Antioquia, onde estava visitando sua mãe. "Não consigo ver outra razão além de quererem me calar", disse Álvarez. "Mas eu havia parado de investigar."

Um mês depois, Álvarez recebeu uma mensagem no WhatsApp de um número desconhecido. "Em breve você estará fazendo companhia a Rafael Moreno. Você e seus seguranças. Vamos matar e queimar você."

"As pessoas acham que é uma história pequena. Na realidade, é um enorme sistema de desvio de dinheiro público e recursos, envolvendo muitos políticos", disse Pico.

De acordo com informações compartilhadas pelo prefeito de San José de Uré, Custodio Acosta Urzola, em resposta a pedidos, em 2021 e 2022, ele assinou uma série de contratos com várias empresas especializadas em obras públicas. O objetivo era construir e melhorar estradas para conectar a pequena comunidade isolada. Esses 20 contratos totalizaram 15 milhões de euros (cerca de R$ 79 milhões).

Diversos meses após a assinatura desses contratos, os moradores começaram a denunciar as atividades de extração de recursos. Por anos, eles testemunharam a zona rural de Versalles, incluindo o rio e a área do entorno, se deteriorar, à medida que as margens do rio se transformavam em um local de extração. Lá o Consórcio Versalles, uma empresa de construção local, recebeu uma autorização da Prefeitura de San José de Uré para "melhorar uma estrada de acesso por meio da construção de uma cobertura de concreto hidráulico", conforme escrito no contrato.

Para Moreno e seus colegas, essa proximidade geográfica entre os locais de extração e construção de estradas dificilmente é uma coincidência. Através de várias postagens online, eles denunciaram o Consórcio Versalles por cometer um "crime ambiental".

Um mês após o assassinato de Moreno, seguindo uma denúncia que ele fez vários dias antes de sua morte, o órgão regional de gestão ambiental, chamado CVS, abriu uma investigação e enviou uma equipe ao local.

O relatório de fevereiro de 2023, de uso interno, obtido pela Cuestión Pública, confirmou as observações de Moreno, incluindo a existência de extrações ilegais e de danos ambientais, e atribuiu a responsabilidade ao Consórcio Versalles. Membros do CVS observaram "vestígios de extração no leito do rio [...] Isso parece ter sido feito sem as autorizações e licenças necessárias, o que é preocupante para o ecossistema e a população local." Em fevereiro de 2023, o CVS ordenou uma investigação administrativa contra o município de San José de Uré e o Consórcio Versalles.

O Consórcio Versalles não respondeu ao pedido de comentário da Forbidden Stories.

"Os trabalhadores da construção começaram o trabalho um ano após assinarem o contrato", disse o líder social Peñate Amor. Os moradores de Versalles afirmam que a estrada ainda parece em construção hoje, apesar do contrato de 2021 estipular o prazo de um ano.

O Consórcio Versalles é uma das muitas empresas que extraíram ilegalmente material do rio, de acordo com várias fontes próximas ao caso. "Em vez de comprar materiais de construção certificados, que têm um certo preço, as empresas [contratadas pelo município] fazem um acordo com políticos para extrair recursos naturais gratuitamente, sem permissão. O dinheiro é então dividido entre essas empresas, os prefeitos e o clã do Golfo", descobriu Pico em sua reportagem.

"Isso representa uma fortuna. É por isso que eles estão dispostos a matar qualquer um", disse ele. "É por isso que eles enviaram dois sicários [assassinos contratados] para minha casa", acrescentou.

San José de Uré na mira dos clãs

Os recursos naturais da região de San José de Uré parecem ter atraído vários clãs políticos disputando o poder em Córdoba, incluindo a influente família Calle. Ela é proprietária da Fazenda Marcelo, uma vasta propriedade que faz fronteira com o rio.

Pouco antes de sua morte, Moreno fez uma transmissão de vídeo ao vivo na fazenda, acusando o clã Calle de participar de atividades de extração na área.

Um dos membros da família, Gabriel Calle Aguas —ex-diretor de campanha do presidente Gustavo Petro e candidato ao governo de Córdoba nas eleições regionais deste mês— anunciou no início deste mês que espera transformar San José de Uré em um polo de produção industrial.

Quando contatado pelo consórcio em abril de 2023, Gabriel Calle Demoya, pai de Gabriel Calle Aguas, negou qualquer responsabilidade na extração de areia, culpando as empresas que realizaram o trabalho. O patriarca também disse à Forbidden Stories que os deputados regionais deveriam ser investigados.

Embora os Calles tenham interesse na área, a investigação do consórcio sobre extrações ilegais em San José de Uré descobriu outras pistas. Fontes que concordaram em falar sob condição de anonimato, por medo de retaliação, identificaram várias figuras locais, incluindo o atual prefeito de San José de Uré, Custodio Acosta Urzola, sujeito a um procedimento administrativo iniciado por Moreno para obter informações sobre as extrações; seu primo, Luis José Gonzalez, ex-prefeito da cidade e candidato nas próximas eleições municipais, que possui uma propriedade na zona de extração.

José Gonzalez não respondeu ao pedido de comentário da Forbidden Stories.

Em uma extensa carta à Forbidden Stories, Urzola afirmou que as atividades de mineração são monitoradas pelo Ministério de Minas e Energia e que "o município [de San José de Uré], por meio da Secretaria de Planejamento, implementou medidas para acabar com esse tipo de mineração ilegal".

Ele também confirmou que visitou o restaurante de fast-food Rafo Parrilla, de Moreno, no dia anterior ao assassinato. A conversa "foi agradável", segundo Urzola, porque ele e Rafael eram amigos desde 2019.

"Naquele dia, ele me contou sobre seu plano de voltar para a escola (...) Eu comprei carne para ele e deixei um presente para sua filha", disse.

Erasmo Zuleta, figura política muito influente na região e atual candidato a governador da região de Córdoba, concorrendo contra Gabriel Calle Aguas, foi outro nome mencionado por fontes próximas a Moreno.

Amplamente favorito para as próximas eleições locais, Zuleta foi deputado na Câmara dos Deputados de 2018 a 2022. Ele pertence a uma das famílias mais poderosas de Córdoba, os Becharas, e foi coordenador do Plano Nacional de Desenvolvimento, que implementou projetos estratégicos em diferentes regiões, de 2018 a 2022 para o departamento de Córdoba.

"Zuleta era deputado quando os contratos foram assinados em San José de Uré. É nesse nível que se decide para onde vai o dinheiro e quais são os municípios prioritários", disse um especialista no assunto.

Em setembro de 2022, pouco mais de um mês antes de sua morte, Moreno conversou com Zuleta, a quem se referiu como amigo nas redes sociais. "Trocamos ideias, eu soube dos muitos esforços que ele fez por San Jorge [nome da área ao redor de San José de Uré]", dizia uma postagem de Moreno ao lado de uma selfie dos dois.

Em resposta às nossas descobertas, Zuleta disse à Forbidden Stories que tem poucas conexões com a região e negou veementemente ter discutido extrações ilegais com Moreno.

Muitas perguntas sobre a última investigação de Moreno permanecem sem resposta, e cada nova pista levanta mais perguntas.

Um ano após o assassinato de Moreno, seus assassinos continuam soltos. "As coisas estão piorando e eu realmente me pergunto onde está a justiça [...] Gostaria que seu trabalho e suas investigações continuassem tendo impacto aqui após sua morte", disse seu sobrinho, José Bula. As próximas eleições, continuou ele, "serão um momento da verdade" e um teste para saber se a morte de Moreno marcou um ponto de virada na região.

Aïda Delpuech , Sofía Álvarez Jurado , Claudia Julieta Duque e Pascale Mariani
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