Atuação de Kissinger no Camboja e no Vietnã deixou legado de ressentimentos

Americano é acusado de prolongar conflito de propósito e cometer crimes de guerra ao dar aval a bombardeios

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Mike Ives
The New York Times

Seus esforços para tirar os Estados Unidos da Guerra do Vietnã e reaproximar o país com a China, assim como a autorização para bombardear secretamente o Camboja, foram algumas das ações marcantes de Henry Kissinger, morto aos 100 nesta quarta-feira (29), no Sudeste Asiático.

Longe de terem ficado no passado, porém, as consequências delas podem ser sentidas na região até hoje.

O então conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Henry Kissinger, cumprimenta Le Duc Tho, à época líder da delegação do Vietnã do Norte, após a assinatura de um acordo de cessar-fogo em 1973 - 23.jan.73/AFP

Kissinger partilhou o Prêmio Nobel da Paz de 1973 por negociar os acordos de paz que encerraram a participação dos EUA na Guerra do Vietnã. Mas alguns críticos o acusam de ter prolongado desnecessariamente a guerra quando uma possibilidade de paz já existia havia anos.

De acordo com eles, o objetivo do então secretário de Estado dos EUA seria, com isso, permitir "um intervalo decente" (palavras do próprio Kissinger) entre a saída dos americanos do país, em 1973, e a vitória final dos vietnamitas do Norte comunista dois anos depois, em 1975.

O bombardeio do Camboja em 1969 e 1970, que Kissinger autorizou na esperança de eliminar as forças pró-comunistas que operavam a partir de bases na fronteira oeste do Vietnã, também alimentou anos de debate sobre se os EUA haviam violado o direito internacional ao expandir o conflito para uma nação supostamente neutra.

Por anos, Kissinger defendeu as decisões que tomou na época. "Os EUA não deveriam ficar aflitos com a ideia de que poderiam ter obtido um acordo mais cedo se seus presidentes tivessem se esforçado mais", disse durante um evento de 2016 no Museu e Biblioteca Lyndon B. Johnson em Austin, no Texas. "Eles não conseguiriam isso caso não entregassem o território ou se retirassem incondicionalmente, o que ninguém teria apoiado."

Quanto ao bombardeio, ele escreveu em suas memórias que as ações do Vietnã do Norte não deixaram outra escolha à administração de Richard Nixon.

O papel de Kissinger na Guerra do Vietnã foi controverso muito antes do fim das hostilidades. Em 1973, Le Duc Tho, o negociador vietnamita do Norte que dividiu o Nobel com Kissinger, rejeitou o prêmio, dizendo que, apoiado pelos EUA, o Vietnã do Sul continuou a realizar "atos de guerra" mesmo após o acordo, e que ele só poderia aceitar a láurea depois que a paz fosse estabelecida lá. (Tho morreu em 1990 sem nunca ter aceitado o Nobel.)

Muitos vietnamitas também se ressentem do papel de Kissinger no estabelecimento de laços diplomáticas entre os EUA e a China, poderoso vizinho do Vietnã e seu antigo ocupante imperial.

A normalização das relações Washington-Pequim em 1979 elevou o status internacional chinês e abriu caminho para seu crescimento, diz o arquiteto vietnamita Duong Quoc Chinh, 46, que atua como comentarista político em Hanói, a capital. "Hoje não gostam dele principalmente porque o veem como o responsável pela prosperidade da China."

No Camboja do pós-guerra, o ex-premiê Hun Sen —que passou quase quatro décadas no poder antes de transferir o cargo para o seu filho neste ano—, argumentou por muito tempo que Kissinger e outros ex-funcionários dos EUA deveriam ser acusados de crimes de guerra por seu papel na campanha de bombardeio.

Autoridades de alto escalão no Camboja, cujo território ainda está repleto de minas não detonadas, sempre viram Kissinger como uma "pedra no sapato", diz Sophal Ear, especialista em economia política cambojano e professor da Universidade do Estado do Arizona, nos EUA. Ele conta que, mesmo hoje, os cambojanos trazem à tona os bombardeios para pressionar Washington em momentos de tensão diplomática.

Muitos analistas afirmam que os ataques dos EUA ao Camboja contribuíram em certa medida para o surgimento do Khmer Vermelho, cujos horrores mataram quase um quarto da população da nação no final da década de 1970.

Ear, que escapou do regime quando criança, acrescenta que aos poucos, porém, Kissinger vem sendo esquecido no Camboja, onde a idade média é hoje de cerca de 27 anos. "Suponho que eles não podem culpar alguém cujo nome eles desconhecem", diz.

O Ministério das Relações Exteriores do Vietnã não respondeu imediatamente a um pedido de comentário sobre o legado de Kissinger. Pen Bona, porta-voz do governo cambojano, recusou-se a comentar.

"Ele era um secretário de Estado dos EUA, então tudo o que ele fez foi em nome dos interesses e da ideologia americana", afirma Sok Eysan, porta-voz da sigla governista, o Partido Popular do Camboja. "Não poderíamos culpá-lo totalmente, uma vez que ele estava apenas seguindo a política externa do seu país."

Durante seu longo mandato, as medidas antidemocráticas do ex-premiê cambojano Hun Sen causaram atritos com os EUA, que frequentemente pediram à sua administração que respeitasse os direitos humanos e realizasse eleições justas. Ao mesmo tempo, Sen se aproximou da China, dizendo que ela era o "amigo mais confiável" de seu país.

O Vietnã, por outro lado, buscou compensar uma relação historicamente próxima, mas complicada, com a China ao tentar estabelecer laços mais estreitos com os EUA, seu antigo inimigo. Embora seja um regime de partido único, Hanói encontrou um interesse em comum com Washington no que se refere à preocupação sobre as ambições crescentes da China no Sudeste Asiático.

Quando o presidente Barack Obama visitou o Vietnã, em 2016, ele disse que Washington revogaria uma proibição de venda de equipamentos militares letais para o Vietnã que vinha de décadas. Em setembro deste ano, durante a viagem de Joe Biden ao país, a liderança do Partido Comunista do Vietnã elevou as relações com os EUA ao mais alto nível na hierarquia diplomática vietnamita, o mesmo que a nação mantém com a Rússia e a China.

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