Museu em Lima guarda registros dos 20 anos da ação de grupos terroristas no Peru

Lugar da Memória é resultado da Comissão da Verdade e da Reconciliação, que completou 20 anos em 2023

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Exposição permanente do LUM (Lugar da Memória, Tolerância e Inclusão Social), em Lima; ao fundo, espaço dedicado aos desaparecidos durante o período dos ataques terroristas do Sendero Luminoso e do MRTA e da resposta das forças militares do Peru, entre 1980 e 2000 Mathilde Missioneiro/Folhapress

Lima

No senso comum, a regra é deixar as tristezas no passado e seguir adiante. Mas há quem transforme as dores e os medos em resiliência para que os dias maus não se repitam. Assim foi e continua sendo com os peruanos, que há 20 anos concluíram a Comissão da Verdade e Reconciliação (CVR) e agora registram o depoimento de 26 vítimas do período de terror entre 1980 e 2000 em uma nova edição do livro sobre o trabalho do grupo.

Além das páginas do livro, os ataques terroristas do Sendero Luminoso e do Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA) e a violenta resposta do governo também são lembrados em um museu. Em Lima, o Lugar da Memória, Tolerância e Inclusão Social (LUM) mostra ao visitante as origens e as respostas para o fim do conflito que deixou quase 70 mil mortos e desaparecidos.

O número de vítimas do período de terror no Peru é superior aos da ditadura militar no Brasil (1964-1985), com 434 mortos e desaparecidos, e dos regimes autoritários no Chile e na Argentina, com 1.469 e 8.631 registros, respectivamente.

Vista externa do LUM (Lugar da Memória, Tolerância e Inclusão Social) em Lima; museu guarda registros dos ataques terroristas praticados pelo Sendero Luminoso e pelo MRTA e a respostas das forças armadas do Peru entre 1980 e 2000 - Mathilde Missioneiro/Folhapress

Apesar da violência em comum, os motivos para as milhares de mortes são diferentes. Enquanto os países vizinhos que sofriam a repressão do Estado, o Peru voltava ao regime democrático quando os ataques terroristas começaram. Os guerrilheiros do Sendero Luminoso e do MRTA queriam tomar o poder e colocar em prática as ideias comunistas de Mao Tse-tung. Para isso usaram a força e o terror não só contra os cidadãos, principalmente os camponeses e indígenas, mas contra autoridades e instituições.

Para Moisés Marques, professor de relações internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), o golpe militar de 1968 no Peru foi diferente dos demais países da América do Sul porque tinha ideal nacionalista à esquerda. Foi após a redemocratização, em 1980, que começaram os ataques terroristas do Sendero Luminoso e do MRTA, que não queriam nem o regime militar nem o poder da elite concentrado em Lima.

Nesse vácuo, segundo o professor, sugiram os grupos terroristas. "Os guerrilheiros queriam tomar o poder usando a violência para completar os ideais socialistas que não deram certo no regime militar. O que salvou o país foi o desempenho econômico", afirma Marques, ao lembrar que o Peru é um grande exportador de minerais e de pescados, além de ter uma posição geográfica estratégica para o comércio exterior.

Mas o plano de tomada de poder pelo Sendero Luminoso começou bem antes do primeiro ato terrorista, em 17 de maio de 1980. Na ocasião, urnas eleitorais foram queimadas em Chuschi, no departamento de Ayacucho, o mais atingido pelo terrorismo, com cerca de 40% do total de vítimas.

Na visita ao LUM, além de ver fotos do que restaram das urnas, é possível entender como os guerrilheiros liderados por Abimael Guzmán, fundador do Sendero Luminoso, doutrinavam crianças e adolescentes com ideais maoístas ainda na década de 1970. O objetivo era formar futuros líderes e se perpetuar no poder.

Entender como o Sendero Luminoso e o MRTA iniciaram os atos de terrorismo é só o começo da visita ao LUM, que foi construído em um terreno em declive de frente para o oceano Pacífico. O projeto arquitetônico permite ao visitante fazer uma imersão na onda de violência, medo e terror vivida pelos peruanos.

Antes mesmo de entrar no museu, o visitante precisa descer uma escada que, simbolicamente, remete à memória mais profunda e sombria dos ataques terroristas, que são mostrados na exposição permanente do primeiro andar. Nesse espaço, também são exibidos a formação dos grupos terroristas e o terror usado principalmente nos Andes e na selva peruana para cooptar adeptos ou como reação a grupos dissidentes.

Entrada da exposição permanente no LUM (Lugar da Memória, Tolerância e Inclusão Social) em Lima, no Peru - Mathilde Missioneiro/Folhapress

O massacre de Lucanamarca, em Ayacucho, que deixou 67 mortos, incluindo 24 crianças, em abril de 1983, foi um dos mais violentos praticados pelo Sendero Luminoso. As vítimas foram assassinadas com golpes de machado e facão e tiros à queima-roupa como forma de dar uma "sanção exemplar" à população que tentava insurgir contra os guerrilheiros.

Nos andares seguintes, o LUM mostra a expansão da violência para outras regiões do país até chegar a Lima. Também é possível compreender a tentativa de derrotar o terror com ações de cidadania para milhares de camponeses obrigados a fazer um deslocamento forçado. Já no final dos anos 1980 forças políticas dissidentes se unem em uma marcha pela paz no Peru em uma tentativa de reconciliação.

Mas a onda de violência continuava com a reação das forças militares do Peru contra os grupos terroristas, que também tentavam se aniquilar entre si. O resultado foram milhares de mortes de civis que sobreviviam em meio ao caos. Para os desaparecidos, o LUM destina um espaço para que as famílias coloquem objetos pessoais, como roupas, documentos e fotos.

O professor Moisés Marques ressalta ainda que, sob a liderança de Alberto Fujimori (1990-2000), foram usados métodos heterodoxos para combater o terror, misturando política, corrupção e violência, cujas consequências podem ser vistas até hoje. "A crise atual surge no governo de Fujimori, que se afundou na violência e na corrupção", afirmou.

A visita ao museu termina em um terraço com vistas ao mar que convida o visitante a uma reflexão sobre toda a violência que o país sofreu ao longo de 20 anos e que cessou após o trabalho de inteligência das forças de segurança peruana.

Para os idealizadores do museu, o LUM não é só voltar a um passado recente, mas compreender e reiniciar uma reconciliação com o presente, ainda tão instável politicamente.

O LUM fica na Bajada San Martín 151, Miraflores, Lima. O museu abre de terça-feira a domingo, das 10h às 18h. A entrada é gratuita mediante a apresentação de documento com foto. No local também funciona uma biblioteca e um centro de documentação abertos ao público. Pela internet, é possível fazer uma visita virtual.


Cronologia dos ataques terroristas no Peru

1980

  • 17 de maio - Primeira ação terrorista do Sendero Luminoso: urnas eleitorais são queimadas em Chuschi, Ayacucho

1982

  • 31 de maio - Fundação do MRTA. Grupo inicia suas ações com um assalto a uma filial do Banco de Crédito em La Victoria, Lima
  • 29 de dezembro - Forças Armadas assume a defesa nas chamadas "zonas de emergência"

1983

  • 2 de janeiro - Prefeito de Huamanga, Ayacucho, Victor Raul Tapahuasco é assassinado
  • 26 de janeiro - Oito jornalistas são assassinados em Uchuraccay, Ayacucho
  • 3 de abril - 67 pessoas, incluindo 24 crianças, são assassinadas em Lucanamarca, Ayacucho
  • 13 de novembro - Guarda Civil mata 32 camponeses em Soccos durante uma festa familiar

1984

  • A partir deste ano, comunidades de Chengui, em Ayacucho, ficam sitiadas por ações do Sendero Luminoso e das Forças Armadas
  • 23 de agosto - 50 corpos são achados em um fosso em Pucayacu, em Huancavelica. Essas mortes são atribuídas a oficiais da Marinha
  • 13 de dezembro - 120 pessoas são executadas em Putis, Ayacucho, por militares

1985

  • 14 de agosto - Militares do Exército matam mais de 60 pessoas em Accomarca, Ayacucho

1986

  • 18 e 19 de junho - Mais de 200 presos condenados ou acusados de terrorismo são mortos em ações militares nos presídios de São Pedro, em Lurigancho, e São João Batista, na ilha El Frontón
  • 16 de outubro - Ex-comandante-geral da Marinha, vice-almirante Gerónimo Caferatta é assassinado

1988

  • 14 de maio - Militares do Exército executam 39 camponeses em Cayara, Ayacucho

1989

  • 27 de março - Posto policial de Uchiza, San Martín, é atacado por 300 sanderistas em colaboração com narcotraficantes. Dez policiais são mortos e 14 feridos
  • 28 de abril - Mais de 50 integrantes do MRTA são mortos em Molinos, Junín, em combate com o Exército
  • 3 de novembro - É realizada a Marcha pela Paz com a participação de quase todas as forças políticas democráticas
  • 8 de dezembro - Líder indígena asháninka é assassinado pelo MRTA em Oxapampa. Em resposta, o exército asháninka é formado.

1990

  • 9 de janeiro - O general Enrique López Abújar Trint, ex-ministro da Defesa, é assassinado pelo MRTA
  • Março - Grupo Especial de Inteligência é formado com objetivo de capturar os líderes do Sendero Luminoso

1991

  • 9 de julho - Victor Polay, líder do MRTA, foge da penitenciária por um túnel de 250 metros com outros 47 integrantes do grupo

1992

  • 15 de fevereiro - Maria Elena Moyano, prefeita da Villa El Salvador, é assassinada pelo Sendero Luminoso na frente dos filhos. Seu corpo é dinamitado
  • 16 de julho - Sendero Luminoso explode um carro-bomba em uma rua de Miraflores, em Lima, deixando 25 mortos
  • 5 de abril - Presidente Alberto Fujimori dissolve o Congresso, intervém no Poder Judiciário e concentra o poder político
  • 9 de junho - Victor Polay, líder do MRTA, é recapturado em Lima
  • 12 de setembro - Abimael Gusmán, líder do Sendero Luminoso, é capturado pelo grupo de inteligência, em Lima

1993

  • 19 de agosto - 52 asháninkas e colonos são assassinados em Santa Rosa de Shiriari, em Júnin

1995

  • 14 de junho - Promulgação da Lei Geral de Anistia

1996

  • 17 de dezembro - MRTA toma a residência do embaixador japonês em Lima durante um evento. Dos 450 convidados, 72 foram feitos reféns e um morreu. A grupo foi libertado em 22 de abril de 1997

1999

  • São realizadas diversas manifestações públicas contra o regime de Alberto Fujimori

2000

  • 13 de novembro - Alberto Fujimori renuncia à presidência do Peru, por fax, enviado do Japão
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