Descrição de chapéu Guerra da Ucrânia

Guerra se arrasta na Ucrânia e põe em xeque versão oficial de programa único de TV

Produzido por 6 emissoras, Telemaratona é acusado de propaganda e de pintar cenário muito otimista do conflito

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Constant Méheut Daria Mitiuk
The New York Times

Desde os primeiros dias da invasão russa, a população da Ucrânia teve acesso a uma única fonte de notícias televisivas —uma transmissão durante todo o dia repleta de imagens de tanques ucranianos bombardeando posições russas, médicos operando perto da linha de frente e líderes políticos buscando apoio no exterior.

O programa, Telemaratona United News, tem sido uma importante ferramenta da guerra de informações da Ucrânia, elogiado pelos funcionários do governo que regularmente aparecem nele por seu papel em combater a desinformação russa e manter o moral elevado.

"É uma arma", disse o presidente Volodimir Zelenski em janeiro do ano passado sobre o programa, que é produzido em conjunto e transmitido 24 horas por dia pelos maiores canais de televisão do país.

Oleksii Dmitrashkivskii, chefe de relações públicas do Exército da Ucrânia em entrevista ao programa Telemaratona, em Kiev, em dezembro
Oleksii Dmitrashkivskii, chefe de relações públicas do Exército da Ucrânia em entrevista ao programa Telemaratona, em Kiev, em dezembro - Brendan Hoffman - 15.dez.2023/The New York Times

Mas depois de quase dois anos de guerra, os ucranianos estão cansados da Telemaratona. O que antes era visto como uma ferramenta crucial para manter a nação unida agora é cada vez mais ridicularizado como sendo pouco mais do que um porta-voz do governo.

Os telespectadores reclamam que o programa muitas vezes pinta uma imagem muito otimista da guerra, escondendo desenvolvimentos preocupantes na linha de frente e o apoio em declínio do Ocidente a Kiev —e, em última análise, falhando em preparar os cidadãos para uma guerra longa.

Com o tempo, a audiência e a confiança na Telemaratona despencaram, o que os especialistas veem como um sinal de desencanto popular mais amplo com o governo à medida que a vitória no campo de batalha se torna difícil de visualizar. Muitos telespectadores preferem passar seu tempo assistindo a reality shows populares e programas entretenimento.

"Todo mundo está cansado dessa imagem que diz: 'Estamos vencendo, todo mundo gosta de nós e nos dá dinheiro'", diz Oksana Romaniuk, chefe do Instituto de Informação em Massa com sede em Kiev, uma organização de monitoramento de mídia. "É propaganda estatal."

Lançada logo após a invasão russa, a Telemaratona inclui seis emissoras que representavam cerca de 60% da audiência total da Ucrânia antes da guerra. Cada uma delas recebe várias horas para preencher com notícias e comentários, que são então transmitidos por todos os participantes em seus canais de notícias.

O programa foi oficialmente promulgado por decreto presidencial e cerca de 40% de seu financiamento vem do governo, de acordo com Oleksandr Bogutski, CEO da StarLight Media, um grande grupo de mídia que participa do projeto.

Mas ainda não está claro quanto controle as autoridades ucranianas têm sobre a linha editorial da Telemaratona.

Vários especialistas em mídia e jornalistas que participam do programa de notícias afirmam que Oleksandr Tkachenko, ministro da Cultura e Informação da Ucrânia até julho, costumava participar de reuniões para coordenar a cobertura de notícias. O ministério não respondeu a vários pedidos de comentário do New York Times.

Preocupações com a influência do governo também foram levantadas depois que vários canais administrados por oponentes políticos de Zelenski foram proibidos de participar da Telemaratona.

No início da guerra, a maioria dos ucranianos via o projeto como vital. À medida que as tropas russas se aproximavam das cidades e vilas ucranianas, a Telemaratona atualizava os telespectadores sobre os combates, aconselhando-os sobre onde encontrar abrigo e quando fugir. "Era um conteúdo que salvava vidas", diz Khristina Havriliuk, chefe de notícias da Suspilne, emissora pública da Ucrânia, que participa da Telemaratona.

O programa também elevou o ânimo das pessoas em um momento crítico, transmitindo mensagens inspiradoras de Zelenski para milhões de lares. "O ânimo que deu às pessoas, o espírito, a esperança, foi realmente impressionante", afirma Romaniuk.

Em março de 2022, o programa representava 40% da audiência total da Ucrânia, segundo Svitlana Ostapa, editora-chefe adjunta do Detector Media, um observatório de mídia ucraniano.

Ao longo dos meses, a Telemaratona se estabeleceu como uma transmissão de notícias bem-sucedida e contínua, com cada canal preenchendo seus horários com relatos da linha de frente, entrevistas com comandantes e discussões com autoridades.

Foi quando a avaliação começou a cair.

No final de 2022, a audiência do programa de notícias havia diminuído para 14% da audiência televisiva, disse Ostapa. Hoje, está em 10%.

Muitos telespectadores dizem que, à medida que a ameaça de uma tomada russa diminuía, os tons patrióticos do programa se tornaram cada vez mais exagerados. "Eles retratam os eventos na Ucrânia como se tudo estivesse bem, como se a vitória estivesse logo ali", disse Bohdan Chuprina, 20, em Kiev.

Assim como outros ucranianos, Chuprina diz que a cobertura da contraofensiva da Ucrânia neste verão foi excessivamente otimista, dando a impressão de que o Exército avançaria rapidamente pelas linhas inimigas. A contraofensiva enfrentou contratempos desde o início e acabou em larga medida falhando.

Ihor Kulias, um especialista em mídia que monitora a Telemaratona para o Detector Media, diz que, durante a maior parte de 2023, os participantes do programa usaram uma linguagem que enfatizava "a eficácia e habilidade das forças ucranianas", enquanto as forças russas eram "descritas como estando em estado de pânico, sofrendo perdas significativas e se rendendo em massa".Foi "uma realidade completamente diferente" da situação atual no terreno, disse Kulias.

Olena Froliak, uma apresentadora de TV ucraniana que trabalha para a StarLight Media, nega que o programa tenha uma visão otimista da situação. No entanto, ela acrescenta que os bombardeios e os desenvolvimentos na linha de frente não são relatados até que o governo se pronuncie sobre eles. "Temos que esperar pela posição oficial", diz ela.

Kulias afirma que alguns canais adotaram uma forma de "autocensura" em sua cobertura. Ele diz, porém, que o Suspilne é um exemplo raro de um canal que manteve em grande parte uma linha editorial independente, convidando críticos de Zelenski e questionando declarações oficiais.

Ainda assim, o número de ucranianos que dizem confiar no Telemaratona caiu acentuadamente ao longo do tempo, de 69% em maio de 2022 para 43% no mês passado, de acordo com pesquisa recente do Instituto Internacional de Sociologia de Kiev. Outro estudo mostra que mais de dois quintos dos ucranianos dizem apoiar o fim do programa.

Muitos críticos dizem que o Telemaratona agora está causando mais danos do que benefícios.

"Tem um lado perigoso, cria uma visão otimista da situação e depois leva à decepção", diz Iaroslav Iurchishin, chefe do comitê de liberdade de expressão do Parlamento da Ucrânia, que questionou publicamente a eficácia da transmissão de notícias no mês passado.

Iurchishin e especialistas em mídia afirmam que temem que o programa tenha cegado as pessoas para o fato de que a guerra continuaria e exigiria mais sacrifícios. A Ucrânia luta atualmente para recrutar soldados e há críticas crescentes de que as pessoas que vivem longe das linhas de frente estão começando a esquecer o conflito.

"Precisamos de informações sólidas e equilibradas que nossa sociedade possa analisar e a partir das quais as pessoas possam tomar decisões", diz Iurchishin.

Conforme a guerra continua, Romaniuk, do Instituto de Informação em Massa, disse que o Telemaratona precisava mudar para evitar imitar o que foi originalmente projetado para combater: a propaganda russa.

"Você não quer ser como a Rússia", afirma. "Devemos pensar em defender a democracia em tempos de guerra."

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