Covid tornou mundo mais solidário, diz autor do Relatório Mundial da Felicidade

Segundo John Helliwell, gerações mais jovens passaram a ajudar mais, o que leva a alta nos índices; guerra tornou russos mais felizes pela expectativa de ganhos territoriais, aponta ele

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André Fontenelle
Paris

John Helliwell, 86, professor da Vancouver School of Economics e da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, é o principal autor do Relatório Mundial de Felicidade desde sua primeira edição, há 12 anos. Segundo ele, entre as constatações mais animadoras do documento neste ano está um aumento da solidariedade entre os jovens após a pandemia. Em entrevista à Folha, ele atribuiu o bom resultado de países do norte europeu, como a Finlândia, ao caráter igualitário das instituições.

Pessoas fazem fila para votar do lado de fora da Embaixada Russa em Helsinque, na Finlândia - Lehtikuva - 17.mar.24/Reuters

Qual é a importância de medir a felicidade das pessoas em termos nacionais?
As pessoas têm muito interesse em saber o que se passa no próprio país, e a sondagem global oferece a oportunidade de fazer isso de forma comparável no mundo inteiro. Isso também criou uma demanda dentro dos países para que as agências nacionais de estatística coletassem mais dados sobre o que está acontecendo. As pessoas querem saber onde a vida está indo bem e, claro, querem saber por quê.

O que o sr. constata na pesquisa em relação ao Brasil?
O Brasil sempre foi uma espécie de "líder da Série B", se falarmos em termos futebolísticos. Muitas vezes agrupamos os países em "ligas", porque eles compartilham muitos antecedentes históricos, a geografia e, às vezes, circunstâncias políticas. O Brasil é uma das sociedades multirraciais mais antigas e mais complexas do mundo. Portanto, tem mais experiência e se sai melhor que outros países semelhantes.

A ascensão de governos de ultradireita em vários países se reflete, de alguma forma, nos resultados da pesquisa?
Até que ponto o governo é uma democracia funcional não é um fator predominante. Não é tão importante quanto a qualidade do governo. Em outras palavras, as pessoas querem uma administração confiável. A extrema polarização que vemos em alguns países pode se tornar um problema grave. Na medida em que você está sempre dizendo que o que o outro faz é ruim, isso leva a crer que coisas boas não estão acontecendo. Essa questão é mais bem administrada em países que têm governos que não são de um só partido, e sim de coligação, onde as pessoas são forçadas a se sentar à mesa e colaborar.

Uma das principais conclusões do estudo é o aumento da felicidade nos países do Leste Europeu. Qual a razão?
Antes da queda do Muro de Berlim, havia uma enorme diferença de felicidade entre a Europa Ocidental e o outro lado. Quando o muro caiu, inicialmente as coisas pioraram ainda mais nos países do Leste, porque eles perderam as instituições que tinham, e as novas não apareciam. Mas, gradualmente, essa página foi virada. Essa convergência continua, e não há razão para suspeitar que vá parar. Os que têm menos de 30 anos já são tão felizes na Europa Central e Oriental quanto na Europa Ocidental. Quanto àqueles com mais de 60, ainda há uma diferença, porque as pessoas dessa idade ainda vivem sobrecarregadas pelo passado.

Qual é o segredo do sucesso constante da Finlândia nos relatórios de felicidade?
Todos os países nórdicos têm um bom desempenho. Acabei de sair de um painel de discussão com diplomatas da Finlândia e da Islândia, sempre entre os cinco primeiros. Eles disseram: "Não há nenhuma razão específica para estarmos no topo." Mas depois explicaram as razões que consideravam responsáveis pelo seu sucesso. Os finlandeses enfatizaram um conjunto de instituições do setor público que são confiáveis e produzem resultados bastante igualitários. Todos têm acesso igual a educação e serviços de saúde de elevada qualidade, o que os equipa para entrar na vida profissional com portas abertas diante de si. As mudanças começam de baixo. Por exemplo, quando fizeram no mundo inteiro o teste da carteira abandonada, 25 anos atrás, o maior número de carteiras devolvidas –100%– foi em Helsinque. Isso não tem nada a ver com políticas governamentais; tem a ver com pessoas que se preocupam umas com as outras.

Israel figura muito bem no ranking, mas a guerra iniciada em outubro foi levada em conta no relatório? Qual é o impacto deum conflito na felicidade das pessoas?
Depende da natureza da guerra. Às vezes, os líderes iniciam guerras deliberadamente ou as incentivam, a fim de criar uma situação de "nós contra eles", o que pode tornar as pessoas mais felizes. Na verdade, os russos estão mais felizes desde a guerra com a Ucrânia, porque pensam em reaver uma "Grande Rússia". Em Israel, não se pode imaginar que isso aconteça, depois do ocorrido em 7 de outubro e da guerra subsequente com o Hamas. Nas avaliações realizadas em Israel, entre o final de outubro e o final de novembro houve uma queda de um ponto, em uma escala de dez. Se esta guerra não tivesse acontecido, Israel seria número um do mundo em felicidade abaixo dos 30 anos [ficaram em segundo lugar, atrás da Lituânia], devido à confiança dos jovens em estar construindo algo juntos.

O relatório deste ano pela primeira vez deu ênfase à questão etária. A geração mais jovem é mais infeliz que a mais velha?
Resposta simples: não. A população "idosa" parece ser mais feliz, apesar de estar ficando menos saudável. Não é que a saúde não importe –importa, e muito. O que acontece é que eles reprocessam o jeito de pensar, ignorando os aspectos negativos, tornando-se mais abertos e confiantes à medida que envelhecem. A questão não é que os jovens estejam pagando cada vez mais pelos velhos. Veja a Índia, por exemplo: lá, tanto jovens quanto velhos estão cada vez mais felizes, ano após ano, e não é um Estado de bem-estar social avançado. Nas experiências com carteiras abandonadas, as pessoas são mais felizes nos países onde a devolução da carteira é maior e onde a expectativa de devolução da carteira é maior.

Segundo o relatório, a pandemia de Covid teve um impacto positivo na solidariedade entre as pessoas.
Uma das descobertas que nos surpreenderam foi esse enorme aumento da benevolência em todas as regiões do mundo, de mais ou menos 20%, especialmente na ajuda a pessoas estranhas. Isso se verifica tanto entre homens quanto entre mulheres, e em todas as gerações. Esta é a primeira vez que analisamos os efeitos da Covid por geração. Descobrimos que os millennials e a geração seguinte tinham uma probabilidade um pouco maior de ajudar os outros antes das restrições impostas pela Covid. Isso é muito encorajador. Significa que não devemos desistir das gerações mais jovens.

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