Muitos países hoje flertam com 'Guantánamos light', diz ex-relatora da ONU

Fionnuala Ní Aoláin foi a primeira representante da ONU autorizada a visitar a prisão em mais de 20 anos

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Base de Guantánamo

Um dos motivos pelos quais a cobrança internacional diminuiu em relação à atuação americana na Guerra ao Terror é porque, hoje em dia, muitos países flertam com uma espécie de "Guantánamo light", afirma Fionnuala Ní Aoláin, relatora especial da ONU de 2017 a 2023 para promoção e proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais no combate ao terrorismo.

A irlandesa foi a primeira investigadora independente das Nações Unidas autorizada pelos Estados Unidos a entrar na prisão na base militar americana em Cuba em 21 anos. A visita ocorreu em fevereiro do ano passado.

Arame farpado cerca uma torre de guarda na Baía de Guantánamo, em Cuba - Lucas Jackson - 21.mar.16/Reuters

"Particularmente na América Latina, países lidam com problemas como crime organizado e pensam em detenção em massa, frequentemente com proteções ao devido processo legal muito, muito frágeis. Ninguém quer levantar muito o tema de Guantánamo [contra os EUA] num ambiente assim," diz a professora de direito à Folha.

Fionnuala cita como exemplo El Salvador, onde o presidente Nayib Bukele, recentemente reeleito, lançou uma enorme operação de encarceramento em massa para combater a criminalidade. O país tem mais de 100 mil presos —em grande parte inocentes, segundo diversas organizações de direitos humanos.

Outro motivo para o silêncio internacional sobre a sobrevivência da prisão é que muitos países não querem arriscar sua relação com os EUA, afirma Fionnuala. As exceções, justamente, são aqueles que têm um interesse geopolítico em criticar Washington, como China e Rússia, que tampouco são autoridades morais em direitos humanos, e Cuba, onde a base militar é localizada em razão de um acordo fechado muito antes de o atual regime ter sido instaurado por Fidel Castro.

Mesmo os países de origem dos detentos, em muitos casos, deixaram de lado seus cidadãos, diz a ex-relatora da ONU. O Iêmen, por exemplo, terra natal de 16 deles, está em guerra.

"Isso mostra o quão descartáveis são esses homens, que não são vistos como importantes geopoliticamente. São pessoas comuns que foram pegas no meio da situação. Ninguém tem interesse em defendê-los", afirma Fionnuala.

Sua visita a Guantánamo foi resultado de quase dois anos de negociação com o governo americano; desde 2002 organismos da ONU tentavam acessar a prisão. Para ela, uma das razões de finalmente ter obtido a autorização é que isso tornou-se do interesse até dos EUA –ao menos, do atual governo.

"Acredito que em parte foi uma tentativa de usar a pressão de uma visita para ajudar a construir um impulso para mais transferências e, em última instância, o fechamento da prisão", avalia.

Ao longo de seu mandato como relatora especial, Fionnuala conta que visitou diversas prisões e conversou com muitos condenados ou acusados de terrorismo. Guantánamo a impressionou pela escala do dano psicológico sofrido por seus detentos, diz.

Antes de ir à prisão, ela e sua equipe fizeram treinamentos com organizações de sobreviventes de tortura. "Sua responsabilidade básica é não fazer mais mal a esses homens, porque você aparece lá com um colete da ONU e, quando isso acontece, às vezes as pessoas acham que o problema delas está resolvido, que eles vão sair de Guantánamo na manhã seguinte", diz.

Segundo ela, a primeira pergunta que ouviu da maior parte dos detentos foi: por que você não veio antes? "A magnitude do sofrimento e o sentimento de abandono deles são realmente profundos."

Fionnuala afirma que os detentos têm uma compreensão sofisticada do que aconteceu com eles e sentem "o desespero resultante disso". Ela diz que a situação é mais difícil para aqueles que foram liberados para transferência, mas continuam presos – é o caso de 16 dos 30 restantes.

Um dos principais pontos do relatório produzido por ela são as necessidades médicas dos detentos, tanto porque convivem com sequelas físicas e psicológicas da tortura como porque estão envelhecendo prematuramente na prisão –resultado dos abusos sofridos, afirma.

Por isso, uma das recomendações aos EUA foi a criação de um programa específico para reabilitação de sobreviventes de tortura. Esse pedido também foi feito por advogados dos acusados no caso do 11 de Setembro nas negociações de um acordo com a Procuradora, mas rejeitado pelo governo Biden.

Em resposta ao relatório, os EUA afirmaram que discordam de muitas das afirmações feitas por Fionnuala. "Nós estamos comprometidos com o provimento de tratamento seguro e humano aos detentos de Guantánamo, em conformidade total com o direito dos EUA e internacional", afirma o governo americano em carta submetida à ONU. "Os detentos vivem em comunidade e preparam refeições juntos, recebem cuidados médicos e psiquiátricos especializados, possuem acesso total a advogados e se comunicam regularmente com familiares."

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