Invasões de Israel deixaram Al-Shifa, o maior hospital da Faixa de Gaza, em ruínas

Reportagem do jornal The New York Times teve acesso ao que sobrou da unidade após duas operações militares de Tel Aviv

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Patrick Kingsley
Cidade de Gaza | The New York Times

O hospital Al-Shifa, na Cidade de Gaza, já foi o principal ponto de apoio do sistema de saúde do território palestino. Agora é um emblema de sua destruição. Ficou em ruínas, como se um tsunami tivesse passado por ele, seguido de um tornado.

O departamento de emergência era um prédio organizado até que as tropas israelenses retornaram ao local em março. Duas semanas depois, a maior parte de sua fachada estava ausente, chamuscada pela fuligem e perfurada por centenas de balas e projéteis.

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Soldado israelense da Flotilla 13, uma unidade de comando, no local do hospital Shifa na cidade de Gaza - Avishag Shaar-Yashuv - 31.mar.24/The New York Times

Os andares da ala leste do departamento de cirurgia foram deixados abertos aos ventos, com as paredes arrancadas e os equipamentos enterrados sob montes de detritos. A ponte que ligava os dois prédios não existe mais, e a praça entre eles, que antes era uma entrada de automóveis circular que envolvia um gazebo, foi transformada por veículos blindados israelenses em um terreno baldio de árvores arrancadas, carros virados e uma ambulância meio amassada.

O hospital era o maior de Gaza, um de seus maiores empregadores e um abrigo para milhares de palestinos durante a guerra. Eu havia visitado suas alas em tempos mais calmos, encontrando palestinos feridos em um conflito anterior e médicos lutando contra a Covid-19. Quando retornei nesta semana, o local estava quase irreconhecível após uma batalha de 12 dias entre soldados israelenses e homens armados e um ataque anterior do Exército israelense.

Durante uma visita de duas horas, não vi nenhum palestino, mas os soldados israelenses que me levaram até lá disseram que ainda havia homens armados dentro de um prédio e um grupo de pacientes e médicos em outro. Ocasionalmente, ouvíamos breves rajadas de tiros. Quando os soldados nos levaram a um ponto estratégico de observação do hospital, eles nos disseram para não ficarmos muito tempo na janela, para não sermos avistados por um franco-atirador.

O simbolismo desse cenário infernal varia de acordo com o observador, em meio a uma profunda divergência sobre como o conflito deve ser relatado e explicado.

Para os israelenses que me trouxeram ao Shifa no domingo, a carnificina é o resultado da decisão do Hamas de transformar uma instituição civil em uma fortaleza militar, deixando Israel sem opção a não ser entrar à força: a prova A do que eles consideram uma guerra de necessidade que não foi iniciada por eles.

"Não tínhamos alternativa", disse o contra-almirante Daniel Hagari, principal porta-voz militar de Israel, que liderou a visita. "Queríamos deixar esses lugares funcionais, mas o que aconteceu foi que o Hamas e o Jihad Islâmico estavam fazendo barricadas e disparando contra nossas forças desde o início."

Para os palestinos que retornaram ao Shifa na segunda-feira (1º), procurando cadáveres depois que os israelenses se retiraram, foi a personificação do desprezo de Israel pela vida civil e pela infraestrutura em sua perseguição ao Hamas: a prova A do que eles consideram um genocídio de palestinos em Gaza.

"Como você pode ver, este é o hospital Al-Shifa depois de ter sido invadido e destruído pelas forças de ocupação israelenses", disse Motasem Dalloul, um jornalista palestino, em um vídeo que ele mesmo filmou e enviou dos destroços na segunda. "Ou o que antes era o hospital Al-Shifa", acrescentou.

Quando nos conhecemos antes da guerra, Dalloul disse que não era membro do Hamas, mas que falava regularmente com seus líderes e integrantes. Ele também atuou como intérprete para suas autoridades.

Andando mais pelo complexo, Dalloul encontrou outro homem que culpava Israel pela destruição. "Essa ocupação vai morrer, Netanyahu vai morrer, os Estados Unidos vão morrer, não importa o quanto eles nos bombardeiem", gritou o homem não identificado. "Não importa o quanto eles nos bombardeiam e destroem o Shifa, a ocupação morrerá", repetiu.

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Soldado israelense da Flotilha 13, uma unidade de comando, caminha para posição de atirador em uma clínica particular fora do hospital Shifa, na cidade de Gaza - Avishag Shaar-Yashuv - 31.mar.24/The New York Times

Analistas afirmam que o retorno de Israel ao Shifa, mais de quatro meses após a primeira invasão, representa um fracasso estratégico. É o resultado da falta de disposição de Israel para iniciar qualquer transição de poder para forças independentes do Hamas, criando um vácuo que permitiu que facção se reagrupasse.

Os soldados israelenses no Shifa retrataram o ataque como um sucesso. De uma só vez, segundo eles, mataram cerca de 200 combatentes e capturaram outros 500 –a maioria, segundo eles, dos combatentes restantes no norte de Gaza. As autoridades locais disseram que centenas de civis foram mortos, uma acusação negada por Israel, e o The New York Times não conseguiu verificar de forma independente nenhum dos relatos.

A unidade de comando naval de Israel, Shayetet 13, invadiu o complexo hospitalar na madrugada de 18 de março. Segundo Israel, a destruição começou depois que os atiradores do Hamas se recusaram a se render e começaram a disparar contra as forças israelenses, o que fez com que elas revidassem.

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Hospital Shifa visto das ruínas de uma clínica particular do lado de fora do hospital na cidade de Gaza - Avishag Shaar-Yashuv - 31.mar.24/The New York Times

Um porta-voz do Hamas, Basem Naim, recusou-se a comentar a acusação de que o Hamas estava operando dentro do hospital, mas negou que seus combatentes estivessem lá. O braço armado do Hamas disse que disparou contra as forças israelenses nas proximidades do Shifa, mas não disse que lutou dentro do complexo.

Os militares israelenses disseram que um dos primeiros homens mortos em 18 de março foi um chefe de segurança, Faiq Mabhouh, cuja morte foi lamentada posteriormente em uma declaração do Hamas. Um mapa fornecido pelos militares israelenses disse que houve pelo menos 13 tiroteios que eclodiram em diferentes partes do complexo nas duas semanas seguintes, enquanto os soldados procuravam por combatentes escondidos no local.

Os militares disseram que os danos aos departamentos de emergência e cirurgia foram tão grandes porque os atiradores se entrincheiraram dentro desses edifícios, um deles dentro de um poço de elevador, forçando os soldados israelenses a dispararem repetidamente contra suas posições. Os militares disseram que encontraram vários esconderijos de armas dentro do hospital.

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Hospital Shifa visto de fora dos escombros na cidade de Gaza - Avishag Shaar-Yashuv - 31.mar.24/The New York Times

Os militares disseram que os combates foram agravados por grupos armados de moradores de Gaza localizados fora do complexo que também dispararam contra os soldados israelenses, levando a tiroteios em torno do perímetro e à morte de dois soldados israelenses fora do hospital. O Hamas afirmou em suas plataformas de mídia social que suas equipes de atiradores de elite haviam disparado contra as forças israelenses nas proximidades do hospital.

Para apoiar sua acusação da presença do Hamas no hospital, os militares israelenses exibiram cópias digitais de documentos, marcados com o logotipo da ala militar do Hamas, que, segundo eles, foram encontrados no local e que supostamente documentavam uma reunião dos membros do grupo dentro do hospital. O Times não pôde verificar a autenticidade dos documentos.

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Veículo blindado israelense em Gaza - Avishag Shaar-Yashuv - 31.mar.24/The New York Times

As autoridades de Gaza, comandadas pelo Hamas, acusaram Israel de matar pacientes e pessoas sem casas que ficaram abrigados no hospital, além de deter inocentes.

Os soldados israelenses que nos escoltaram no domingo negaram veementemente qualquer acusação de irregularidade. Eles disseram que transferiram mais da metade dos médicos e pacientes para outras instalações de saúde, além de permitir que a grande maioria dos 6.000 civis que estavam abrigados no hospital se deslocasse para o sul. Eles disseram que haviam detido 900 pessoas, 500 das quais, segundo eles, eram combatentes e cerca de 400 outras que ainda estavam sendo investigadas. Os números não puderam ser verificados de forma independente.

"Estou aqui há 14 dias", disse o comandante do Shayetet 13, que pediu para permanecer anônimo, de acordo com o protocolo militar. "São os meus soldados. Até onde eu sei, essas acusações são mentira."

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