Descrição de chapéu drogas

Movimento de descriminalização de drogas enfrenta recuos na Europa e nos EUA

Temor de criminalidade leva a medidas de restrição em países como Holanda e Dinamarca; estado americano do Oregon volta atrás, e porte voltará a ser punido com prisão

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São Paulo

O cenário de políticas sobre drogas no mundo no início de 2024 teve a recente legalização parcial do uso recreativo da maconha na Alemanha, mas tem sido marcado também por medidas mais restritivas na Europa e nos Estados Unidos.

O maior recuo aconteceu em fevereiro, quando Oregon voltou atrás de uma decisão de ser o primeiro estado americano a descriminalizar todas as drogas.

Enquanto os defensores da descriminalização comemoraram a decisão alemã, os adeptos da guerra às drogas têm usado o caso americano para indicar o fracasso da liberação e defender a proibição total.

População de Berlim comemora a legalização do uso recreativo da maconha em frente ao portão de Brandemburgo - Christian Mang - 21.mar.2024/REUTERS

Na Holanda, conhecida internacionalmente por uma postura mais flexível em relação às drogas —apesar de não haver uma legalização oficial—, é crescente a preocupação com a associação entre entorpecentes e a criminalidade. Segundo uma reportagem da revista The Economist, Amsterdã reduziu o número de cafés que podem vender maconha e proibiu o consumo da droga no chamado distrito vermelho. Femke Halsema, prefeita da cidade, disse que a Holanda corre o risco de se tornar um "narcoestado".

O prefeito de Roterdã, segunda maior cidade holandesa, declarou recentemente que uma atitude "negligente" em relação ao uso recreativo de drogas, incluindo a aceitação da cocaína como o narcótico preferido da classe média, levou à violência e à corrupção nos bairros mais pobres da Europa.

Um debate sobre a legalização das drogas pesadas na Holanda eclodiu entre políticos locais. O ministro interino da Justiça e Segurança, Dilan Yesilgöz, disse que era tarde demais para legalizar as drogas e disse que era "ingênuo" discutir o tema. "Se os homens e mulheres dos serviços de proteção e segurança não estivessem presentes, o Estado de Direito já teria entrado em colapso", disse.

Na Dinamarca, moradores do famoso enclave hippie de Copenhague, Christiania, desmontaram recentemente a rua principal do bairro, conhecida pelo comércio de maconha, na esperança de libertar a área de gangues criminosas, segundo relatos da rede britânica BBC. Durante mais de 50 anos, o bairro foi conhecido pela sua atitude liberal em relação às drogas, mas o crime organizado tem assumido cada vez mais o controle e a violência crescente tem abalado a comunidade.

Recuo americano

A decisão de Oregon reverteu uma aprovação eleitoral de 2020 que liberava a posse de pequenas quantidades de todas as drogas e expandia os serviços sociais e de saúde para usuários.

Apesar de muitos especialistas defenderem que a política no estado americano na verdade deu certo, cenas de uso de drogas em público, o aumento do número de pessoas em situação de rua e o crescimento do registro de overdoses levaram o governo a mudar de rumo. A partir de setembro, o porte de drogas voltará a ser crime punível com prisão.

Assim como Oregon, relatos de dúvidas sobre a descriminalização estão ganhando destaque na imprensa internacional. Ainda segundo a reportagem da Economist, há uma redução no ritmo de abertura e na mudança das leis, enquanto políticos e a população de países antes vistos como modelo, como Portugal, Suécia e Holanda, mostram-se preocupados com a criminalidade que continuam a ver como associada às drogas. Aliado ao avanço da ultradireita no mundo, isso poderia indicar um refluxo das políticas desse tipo.

Para ativistas e pesquisadores de leis sobre drogas, entretanto, a reversão da lei em Oregon fez da descriminalização um bode expiatório para todos os problemas do estado e manipulou informações para alimentar o movimento proibicionista.

"O problema é que a descriminalização deve vir acompanhada de políticas sociais e de tratamento de saúde para os usuários, mas muitos países estão cortando o orçamento enquanto mudam a lei de drogas", explica Ian Hamilton, pesquisador da Universidade de York, no Reino Unido. "Foi o que aconteceu em Oregon. Temos uma abertura maior para drogas, mas falta apoio social e de saúde. Essa não é uma boa receita", afirma.

De acordo com Theshia Naidoo, diretora de política externa da ONG americana Drug Policy Alliance, fatores externos geraram os problemas da descriminalização em Oregon.

Segundo ela, o aumento de overdoses ocorreu por conta da crise do opioide fentanil, que afeta o país inteiro, e não teve relação com a lei estadual. Além disso, o fim da pandemia de Covid-19 gerou uma mudança na legislação que lida com moradia no estado, o que facilitou o despejo de inquilinos e aumentou o número de pessoas em situação de rua —também um problema em âmbito nacional.

"Usar Oregon como exemplo do fracasso de descriminalização é uma manipulação da realidade. O que houve foi falta de investimento e atraso no envio de verbas para oferecer os serviços necessários para dar apoio à população", diz Naidoo.

A opinião é compartilhada pela professora de direito da Universidade de Essex, também no Reino Unido, Julie Hannah. "O fracasso não foi a descriminalização, mas a ausência de políticas sociais mais amplas", diz. "Se nos concentrarmos apenas na descriminalização e ignorarmos reformas sociais mais amplas, como a habitação, a saúde e a segurança, surgirão outros problemas."

Morador de Oregon usa o opióide fentanil no centro de Portland. O estado americano recuou da descriminalização total de drogas - Patrick T. Fallon - 2.abr.2024/AFP

A questão, dizem os especialistas, é que o retrocesso americano revelou a necessidade de aplicar políticas sociais de forma paralela, para garantir o sucesso da medida. Sem essas medidas de apoio, avaliam, o processo de descriminalização tende a não surtir os efeitos esperados.

Ainda assim, esse tipo de movimento nos EUA pode influenciar o debate no Brasil.

O STF (Supremo Tribunal Federal) está julgando um caso que pode deixar de tratar como crime a posse de pequenas quantidades de maconha. Paralelamente, uma proposta que criminaliza o porte e a posse de drogas está em discussão no Congresso e foi aprovada na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado, com apoio de grande parte dos brasileiros. Uma pesquisa Datafolha apontou que 67% da população se diz contra a descriminalização.

Avanço global

Apesar da sensação de desaceleração do processo de abertura, organizações e acadêmicos que se dedicam a estudar políticas de drogas em todo o mundo afirmam que o movimento internacional ainda é mais favorável à liberação.

"Se há uma tendência global, é de avanço acelerado da descriminalização", diz Steve Rolles, analista da fundação britânica Transform Drug Policy. "Até 12 anos atrás, o que havia era proibição total na maioria dos países. Agora há avanços, e quase meio bilhão de pessoas vivem em países em que há algum modelo de descriminalização", explica.

"Cada vez mais países percebem que a proibição não traz benefícios à saúde e ao bem-estar", diz Juan Fernandez Ochoa, que atua em campanhas da rede IDPC (International Drug Policy Consortium). "A própria ONU recomenda a descriminalização."

O fluxo de regulamentação é irregular, entretanto, e cada país tem adotado um modelo diferente em relação à questão.

Há o caminho da descriminalização, que evita prisão e condenação de usuários, mas há também o da liberação para uso de drogas específicas. Além disso, a maioria tem focado apenas a questão da maconha, e não há um consenso sobre qual seria a melhor forma de fazer esta transição.

Neste sentido, a liberação da maconha na Alemanha é apontada como um passo importante. O país determinou em março que adultos podem transportar e cultivar a droga. Este sinal pode até mesmo influenciar uma ampliação do debate em outras partes do mundo.

A lei alemã ainda é alvo de críticas por não ter uma contrapartida social muito bem definida. Ainda assim, o governo prometeu uma campanha sobre os riscos do consumo, destacando que a maconha continua proibida para os menores de 18 anos e que o uso é proibido a menos de cem metros de escolas, creches e parques infantis. Então não gera tanta preocupação quanto Oregon e tem potencial de dar peso às decisões contra a proibição.

"Trata-se de um país-chave da União Europeia, que pode vir a se tornar um modelo para que mais governos levem adiante a descriminalização", explica Rolles. A reforma posiciona a Alemanha entre os países mais permissivos com a maconha na Europa, ao lado de Malta e Luxemburgo, que legalizaram o consumo recreativo nos últimos anos.

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