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Oregon vê crise de moradia se associar a debate sobre descriminalização de drogas

Aumento da população em situação de rua impulsionou movimento para retomar proibição de porte de entorpecentes; Bolsonaro fez post criticando liberação no estado americano

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São Paulo

Um vídeo mostrando uma passagem subterrânea de pedestres de Portland, nos Estados Unidos, ocupada por pessoas em situação de rua em meio a lixo e móveis deteriorados foi divulgado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro na última quinta-feira (25). As imagens seriam um alerta de que a descriminalização das drogas no estado de Oregon teria transformado a cidade em uma "locação de um filme de zumbis", segundo o ex-governante brasileiro.

A crítica se alinha a muito do que pensam os próprios moradores do estado, que recentemente apoiaram voltar atrás da lei que havia liberado as drogas. A medida 110, aprovada em novembro de 2020 com 58% dos votos, se tornou impopular pouco depois da liberação do porte de drogas no estado.

Frame de vídeo feito por ativista Kevin Dahlgren que mostra passagem subterrânea em Portland (EUA) tomada por lixo
Frame de vídeo feito por ativista Kevin Dahlgren que mostra passagem subterrânea em Portland (EUA) tomada por lixo - Reprodução/Kevin Dahlgren no X

Pesquisas realizadas no final de 2023 mostravam que 64% dos moradores do estado apoiavam a revogação da lei. E a principal motivação para isso era a sensação de que ela havia contribuído para o aumento da população em situação de rua. A partir do segundo semestre, o porte de entorpecentes pesados volta a ser crime novamente.

Dados gerais dos EUA e análises de especialistas indicam, porém, não haver uma relação direta entre a crise de moradia e o uso de drogas. O aumento da população em situação de rua é um problema em todo o país nos últimos anos e atinge também estados que não liberaram as drogas.

"Não existe uma ligação entre pessoas em situação de rua e o uso de drogas", diz Jacen Greene, diretor-assistente do grupo de pesquisa sobre pessoas em situação de rua na Universidade Estadual de Portland, em entrevista à Folha.

Greene se baseia em evidências de estudos nacionais sobre a população desabrigada nos EUA. Os dados mais recentes indicam que há mais de 600 mil pessoas sem casa no país, um problema nacional que vem crescendo, mas que é anterior à descriminalização das drogas em estados americanos.

"Por Oregon ter experimentado a descriminalização, as pessoas culpam as drogas pelo aumento de pessoas nas ruas. Mas correlação não é causalidade", diz Greene. Segundo ele, o mesmo problema acontece em outros lugares, o que indica que a descriminalização não é responsável pela crise de moradia. "O estado de Virgínia Ocidental tem problemas com drogas mesmo sem ter tantas pessoas nas ruas."

De acordo com o mais recente relatório sobre o tema produzido pelo Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano do governo de Joe Biden, Virgínia Ocidental é o quarto estado com menos pessoas em situação de rua. Oregon é o sexto estado com maior população de rua, atrás de estados que também têm política liberal em relação às drogas, como Califórnia e Nova York, mas também de estados governados por republicanos e menos favoráveis à descriminalização, como Flórida e Texas.

Mesmo em termos proporcionais, Oregon tem menos pessoas em situação de rua do que Nova York e Vermont. Por mais que a população de rua do estado tenha crescido mais nos últimos anos, ela ainda teve um aumento menor do que a do Arizona.

Preconceito

Mais relevante, segundo Greene, é que não há evidências de que o uso de drogas entre populações de rua nos EUA seja descontrolado.

Segundo dados inéditos de um estudo em Oregon, obtidos pela Folha, 25,6% dos adultos em situação de rua têm algum tipo de problema envolvendo o consumo de drogas. O levantamento abrange três condados na região de Portland.

Morador de Oregon usa o opióide fentanil no centro de Portland. O estado americano recuou da descriminalização total de drogas - Patrick T. Fallon - 2.abr.2024/AFP

Entre a população geral, 13,5% dos americanos com 12 anos ou mais usam drogas, segundo pesquisa do Centro Nacional de Estatísticas sobre Abuso de Drogas em 2020. Além disso, 25,4% dos usuários de drogas ilegais desenvolvem algum tipo de transtorno, um número semelhante ao encontrado entre as populações de rua.

"Há usuários e pessoas com problemas com drogas entre todas as populações, as que têm casa e as desabrigadas. A diferença é que não vemos as pessoas usando nas suas casas, enquanto as que estão na rua são visíveis", diz Greene.

Segundo ele, grupos que se opõem à descriminalização das drogas estavam procurando motivos para desacreditar o modelo de liberação adotado em Oregon. "Pessoas em situação de rua são uma resposta fácil, mas incorreta, para explicar os problemas sociais e de drogas nos EUA", explica.

Isso acontece por serem duas populações que ainda são alvo de preconceito pela sociedade, argumenta o pesquisador. "Pessoas em situação de rua e usuários de drogas são indesejáveis. A sociedade ainda permite o preconceito contra esses grupos."

Em entrevista ao New York Times, o prefeito de Portland, o democrata Ted Wheeler, deixou claro que a volta da proibição ao consumo de entorpecentes pesados no estado não representa um retorno da guerra às drogas. "A guerra às drogas não funcionou", disse, destacando a importância de um sistema de apoio à saúde mental dos usuários, que segundo ele não está sendo suficiente para atender à população.

Pessoa em situação de rua empurra carrinho de supermercado com sacolas em Portland, Oregon - Patrick T. Fallon - 10.fev.24/AFP

Oregon e a crise nacional

Para além da discussão sobre a descriminalização de drogas, Oregon também está no centro das atenções sobre a crise de moradia por uma questão jurídica.

Uma política defendida por Grants Pass, uma pequena cidade de apenas 39 mil habitantes, está em análise na Suprema Corte dos EUA para determinar se os governos podem proibir legalmente as pessoas de dormirem na rua. A cidade busca o direito de vetar a permanência de pessoas em situação de rua, e a decisão pode ter implicações em todo o país.

"Querem criminalizar a pobreza. Não ter onde dormir pode fazer com que as pessoas sejam presas, mesmo que o Estado não ofereça um abrigo para elas. É uma punição cruel por algo que não é opção das pessoas", diz Greene.

A decisão da Suprema Corte deve sair até o fim de junho.

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