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Portugal Revolução dos Cravos, 50

Quando, em Portugal, há 50 anos, em uma quinta feira de abril, como hoje

Esse foi o dia em que a liberdade inventou o país que hoje o Brasil ama

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José Manuel Diogo

Diretor da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Brasileira, é fundador da Associação Portugal Brasil 200 anos

Estou em Lisboa. Os dias de abril aqui são longos e luminosos. Hoje, nestas paragens do norte, o ângulo do sol com a Terra faz com que o dia dure até depois das 9 da noite mas, em 1974, a ditadura em Portugal tinha suspendido a hora do verão e, no horizonte, também a noite chegava mais cedo.

A Revolução dos Cravos chegou numa manhã clara, como escreveu Camões, ao som de passos firmes pisando a terra. José Afonso cantava na rádio "Grândola, Vila Morena" e nesse mesmo dia, antes do sol se pôr, nada seria como antes.

O meu pai, então operário, passava a vida a pedir-nos segredo, a mim e a minha mãe. Meu irmão era ainda um bebê, quando, em casa, ouvíamos baixinho as vozes da onda curta entoando murmúrios de canções de combate. Sérgio Godinho. Maré Alta, "a liberdade está a passar por aqui".

Visitantes em exposição do fotógrafo Eduardo Gageiro sobre a Revolução dos Cravos em Lisboa
Visitantes em exposição do fotógrafo Eduardo Gageiro sobre a Revolução dos Cravos em Lisboa - Patricia de Melo Moreira - 6.abr.24/AFP

O senhor Manuel, era, à época, um dirigente da Juventude Operária Católica (JOC), e inspirava o seu combate democrático na saudade longínqua de uma ideia de liberdade importada do Brasil, morta no golpe de 64, que bebia do exemplo solidário do bispo Hélder Câmara.

Protegido por seus ideais católicos, o meu pai espalhava ideias de futuro, defendendo a paz, o que então equivalia a protestar contra a guerra. Isso valeu-lhe umas quantas anotações em sua cédula profissional e algumas desagradáveis visitas à Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Pide).

No dia 25 de abril de 1974, há exatamente 50 anos, eu tinha 7 anos e também era quinta-feira. Levantei-me e tomei o café da manhã que a minha mãe preparou e, como em qualquer outro dia, percorri a pé o caminho até à escola. Estranhei quando, ainda antes do recreio, onde sempre que não chovia jogávamos futebol, o meu pai me foi buscar.

Ele veio de carro mas, como a escola não ficava a mais de 500 metros de nossa casa, logo entendi que alguma coisa fora do comum tinha acontecido. Arrumei os livros e cadernos e obedeci à professora. Atravessei o pátio e logo topei com o Austin 1100 azul claro que era à altura o modesto carro da família.

Recordo o momento como se fosse hoje. A porta abriu-se e lá dentro e, com um enorme sorriso, ainda mais reluzente, debaixo dos óculos de massa preta que eram moda nos anos 70, o meu pai disse: "Anda, Zé Manel. Chegou a revolução".

O meu pai era 1 de 11 irmãos. Dos que sobreviveram ao parto, 5 eram homens e todos eles foram soldados. Havia guerra em África, guerra feroz na Guiné e em Angola. Guerra contra o futuro, Portugal tentando impedir a independência e autodeterminação das suas antigas colônias. A moeda portuguesa, o escudo, não tinha convertibilidade no mercado internacional, Portugal era condenado na ONU e estava isolado do mundo. Mas nem assim o regime caia.

Até que, nesse dia de abril, quinta-feira como hoje, militares e cidadãos, de mãos dadas contra a guerra, depunham um regime podre, pobre e anacrônico. Um movimento de capitães e tenentes, militares de carreira do baixo clero das forças armadas, rompia finalmente o ranço de décadas e levava Portugal para o século 20, acabando com o Estado Novo que lançara o país em um atraso deliberado de décadas.

Mas a democracia haveria de tardar ainda. Os meses seguintes seriam de total instabilidade (insanidade) política. Durante esse período —que ficou conhecido por Processo Revolucionário em Curso (Prec), seguindo a liderança do Partido Comunista, magnificamente organizado na clandestinidade e infiltrado no Movimento das Forças Armadas (MFA)—, Portugal virava teatro da Guerra Fria em plena Europa Ocidental.

Vítima do braço de ferro entre americanos e soviéticos e da sua divisão maniqueísta do planeta, que criara a designação de "terceiro", para o mundo que não se alinhava com alguma das duas superpotências, o país luso esteve muito perto de passar diretamente de uma ditadura para outra, mas desta vez de esquerda.

Teriam de passar exatamente 17 meses, entre expropriações, nacionalizações, invasões de terra, reformas agrárias e outros anacronismos sociais, até que, no dia 25 de novembro de 1975, depois de enfrentamentos no entorno de Lisboa, forças militares moderadas ganhavam aos simpatizantes da União Soviética. Os militares afetos ao PCP perdiam a contenda e entregavam de vez o controle do governo aos civis, reduzindo definitivamente o seu papel na política portuguesa.

Este momento marcou um ponto de inflexão, após o qual o processo de democratização pôde prosseguir com menos interferência militar, e Portugal finalmente entrou na rota da democracia. Esse foi o dia em que a liberdade "inventou" o país que hoje o Brasil ama.

Curta introdução para uma longa história, estes são os fatos essenciais que explicam, meio século depois dos acontecimentos, como a "Revolução dos Cravos", metáfora colorida e simples, feita a vermelho e negro, flor e fuzil, começou a mudar Portugal.

Fugindo às pressas, muitos dos "fascistas", membros e amigos do governo que ruíra como um castelo de cartas, encontraram asilo na ditadura "amiga" brasileira —onde Ernesto Geisel acabava de chegar ao poder— e por aqui continuaram disseminando a ideia de um Portugal antigo, rural e atrasado. Ideia que haveria de dominar a percepção coletiva que o Brasil construiu de Portugal até ao início deste milênio.

Portugal era um país rural, analfabeto e sem classe média. Quando nasci, a minha expectativa de vida era 62 anos, muito abaixo da média europeia. O analfabetismo também era um problema. Éramos 52 primos diretos na nossa família. Desses, apenas 6 conseguiram morar na cidade, e 2 —eu e meu irmão— estudar na universidade. Mais de 25% da população adulta, principalmente mulheres e idosos em áreas rurais, não sabia ler nem escrever.

Economicamente, a renda per capita era muito inferior à média da Europa Ocidental, aproximadamente um terço da média da Comunidade Econômica Europeia e a taxa de mortalidade infantil —55 mortes por mil nascimentos— explicava porque apenas conheci 7 dos 14 irmãos de minha mãe.

A economia era majoritariamente agrária, com muitos trabalhadores empregados em pequenas fazendas e um setor industrial pouco desenvolvido, levando a uma alta taxa de emigração, especialmente para França e Luxemburgo, como forma de escapar do desemprego.

Só quando Portugal aderiu à União Europeia, as coisas começaram a mudar. Primeiro para pior. Acompanhando a "reforma agrária" e a total desestruturação de uma já enfraquecida economia portuguesa, a abertura das fronteiras trouxeram as drogas e o álcool que se abateram sobre a minha geração como uma praga feliz.

No país habitual dos brandos costumes, onde até a Coca-Cola era proibida e todas as artes vítimas de censura, a liberalização das importações, e da moral, trouxe a esculhambação geral para dentro das universidades e com maior dano para as escolas secundárias (ensino médio). Então "o cavalo" e as "chinesas" (calão para heroína) substituíram-se à guerra no obituário da juventude.

Quando entrei para a Universidade de Coimbra, em 1986, exatamente o ano de entrada na UE, o ônibus que conectava a minha cidade natal, Castelo Branco, à cidade dos estudantes, 120 km em linha reta, demorava 7 horas. Tudo o que era pequeno nos parecia grande e o grande era para nós, jovens do interior, totalmente desconhecido.

A educação foi a chave. Os fundos da UE, o oxigênio. Abriram-se novas escolas, novas estradas, novos hospitais, novas empresas e novas universidades. Portugal deixava as pescas e a produção industrial para quem pagava a conta —franceses e alemães— e virava o país do sol. O turismo começava a se posicionar como a primeira indústria —que ainda hoje é— e os ingleses invadem o Algarve potenciando um aeroporto internacional inaugurado em 1965 e até então subaproveitado.

Alteram-se radicalmente os costumes, e a influência da Igreja Católica entra em declínio. 1975 foi o ano de sempre com mais casamentos em Portugal (103.125), quando entrou em vigor a lei que permitia o divórcio dos casamentos católicos (proibido desde 1940). Muitos casais que já estavam separados de fato divorciaram-se oficialmente para poderem casar de novo.

A sociedade de consumo instala-se. A concessão de crédito dispara. Os portugueses passam de inquilinos a proprietários, e as famílias são invadidas por uma febre capitalista. O país endividou-se, as famílias endividaram-se, mas a Europa pagava sempre se continuássemos a consumir. No país começa a ouvir-se falar de corrupção.

Chegamos ao início no novo milênio e a imagem externa de Portugal melhorou, mas ainda é olhado pelo Brasil cosmopolita como um país católico e atrasado cheio de velhinhas de bigode, manezinhos e ladrões do quilo. Mesmo quando do Minho ao Algarve o país se começava a unir pela rede de estradas mais eficaz do mundo, as melhores telecomunicações e onde pequenas cidades de província ganham equipamentos sociais de primeiro mundo.

Mas a fama de provincianos e atrasados não larga os lusitanos, sobretudo no Brasil, para quem a "Europa" ainda não inclui o país irmão. Foi preciso que um gaúcho, técnico de futebol, pentacampeão, aceitasse treinar a seleção das quinas para que a imagem de Portugal no Brasil mudasse para sempre. Felipão colocou paixão e bandeiras nas janelas das casas portuguesas, e o seu amor explícito (e repetido) por Portugal ecoou como um megafone aos ouvidos de muitos brasileiros. Era o gatilho necessário.

Hoje, espalhados por todo o país, moram talvez um milhão de brasileiros em Portugal —já não apenas em Lisboa, Cascais, Porto, Coimbra ou Braga, mas em todos os 21 distritos. Mudar para Portugal é hoje tão natural como era nos anos 60 ir do Ceará para São Paulo.

A "terrinha" virou objeto de desejo para a classe média, e morar em Portugal, um sonho de consumo. A elite dos negócios sente-se jovem nas ruas calmas de Lisboa e do Porto, e a elite cultural quer saber quem são os artistas, os escritores e os novos intelectuais portugueses. 


Hoje é comum ouvir políticos, empresários, intelectuais afirmarem com naturalidade que Portugal é a porta de entrada na Europa, mas na verdade pouco de substantivo mudou desde que em 2001 Fernando Henrique Cardoso e o primeiro-ministro António Guterres assinaram na Bahia os Acordos de Porto Seguro, que já incluíam a cooperação em áreas como educação, cultura, ciência e tecnologia, defesa e desenvolvimento econômico e até o compromisso com o fortalecimento da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e a promoção global da língua portuguesa e da cultura lusófona. Mas era cedo de mais.

Foram as celebrações dos 200 anos da independência que, acontecendo em um momento delicado da política interna, mostraram a existência de um novo élan, e um novo tempo de relacionamento entre portugueses e brasileiros. Maior que a história passada e fundado na certeza cada vez mais partilhada de um futuro comum.

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