Descrição de chapéu Bolívia América Latina

Golpe na Bolívia foi obra cômica sem pé nem cabeça, diz opositor Carlos Mesa

Líder do país entre 2003 e 2005, centro-esquerdista defende mudança política e critica briga entre poderes Judiciário e Legislativo

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Buenos Aires

Repudiando a tentativa de golpe de Estado da quarta-feira (26), o ex-presidente de centro-esquerda Carlos Mesa, 70, vê um ano pré-eleitoral complicado na Bolívia, com a possibilidade de que o atual presidente, Luis Arce, possa não terminar o mandato.

Em entrevista à Folha, por videoconferência, Mesa afirmou que há uma crise de liderança e um descrédito dos bolivianos em relação à Justiça e à Corte Constitucional, principalmente se esta der ao ex-presidente Evo Morales a possibilidade de concorrer a um quarto mandato, hoje proibido pela Constituição.

Mesa presidiu o país entre 2003 e 2005, tendo assumido após a renúncia de Gonzalo Sánchez de Lozada, pressionado por protestos sociais que levaram a mais de 70 mortes.

O ex-presidente da Bolívia Carlos Mesa durante entrevista à agência Reuters em La Paz - Manuel Claure - 29.dez.22/Reuters/REUTERS

Como o sr. define o que ocorreu na última quarta-feira (26)?
Trata-se de uma expressão muito clara de uma crise da democracia boliviana, que tem a ver com o desgaste de suas instituições, do Executivo mal administrado, de um Judiciário que responde às ordens do Executivo, de um conflito de poderes entre Judiciário e Legislativo, e, agora, como se tudo isso fosse pouco, com uma crise nas Forças Armadas.

O que temos adiante é a decomposição da institucionalidade democrática do país, vinculada à divisão cada vez mais profunda entre o MAS [Movimento ao Socialismo] de Evo Morales e o MAS de Luis Arce.

Dito isso, o que houve ontem foi uma obra cômica mal desenvolvida, e muito pior executada, algo sem pé nem cabeça.

Não se pareceu com um golpe de Estado?
Se isso fosse classificado de golpe de Estado, estava todo mal feito, por isso fica a dúvida de que tenha sido feito por um só homem, o sr. Zúñiga, ou se o governo teve algo a ver.

Há gente dizendo em meios de comunicação internacionais que o golpe vinha sendo planejado por semanas? O que acha?
Se tivesse sido bem planejado, há várias semanas, eu não creio que tivesse sido o fiasco tão lamentável que foi para a imagem do país e das Forças Armadas, prestando-se a um espetáculo com uns poucos soldados e um par de tanques na praça Murillo. Não há nenhum indício de algo planejado com serenidade para alcançar um resultado objetivo.

E quais os resultados imediatos?
O vitimismo no qual o governo entrou agora, agravando isso como se fosse realmente uma imensa tentativa de golpe de Estado, leva a opinião pública a ter sérias dúvidas sobre a legitimidade do golpe de Estado e sobre se é verdade o que está sendo dito pelo governo.

Quem acredita que isso ia ser suficiente para derrubar o presidente Arce não tem ideia do que é fazer um golpe de Estado. E veja que aqui, na Bolívia, vivemos muitos e muito violentos golpes de Estado. Não faltam exemplos.

O sr. crê na estratégia de um autogolpe?
Zúñiga no dia de ontem [quarta-feira (26)] deu duas entrevistas à imprensa. Na segunda, pouco antes de ser detido, acusou Arce de ter sido quem protagonizou o golpe, ou o estimulou. Depois, falou em liberar presos políticos, vinculando-se a um sentimento partidário, da direita ou da oposição, porque não cabe ao Exército fazer essas avaliações. Dá lugar, no mínimo, à dúvida, a de que esse golpe tenha tido políticos por trás. Quais, não sabemos ainda ao certo.

É muito estranho também que o presidente tenha utilizado demais esse episódio, para logo fazer um discurso que mais parecia o de um candidato presidencial do que de um presidente atribulado com questões muito mais urgentes como as que decorrem de um levante como esse.

Por que há uma insatisfação nas ruas? Os números da macroeconomia não estão tão ruins como já aconteceu no passado.
A macroeconomia não vai tão bem como parece. Temos um déficit fiscal anual crônico de 8% do PIB, uma queda brutal das reservas do Banco Central, não há mais dólares, falta efetivo em moeda local. Nossas reservas de gás caíram praticamente ao chão. E há um processo de inflação crescente, pois a Bolívia consome muitos importados e ao não haver divisas para a importação, faltam esses produtos. Estamos deficitários em diesel e em gasolina.

Quem devem ser os protagonistas das eleições de 2025? A oposição, exceto o sr., está em problemas jurídicos, o governador Camacho preso, a ex-presidente Jeanine Áñez, condenada.
A pergunta mais importante é o que esperar de um tribunal constitucional ilegal controlado pelo governo e que continua no cargo após ter terminado seu mandato. Neste cenário, qual é a garantia de que vamos ter uma eleição medianamente transparente e não manipulada?

Pela lei, a eleição ocorre no ano que vem, mas eu creio que, com essa corte, é bastante possível que essa data se altere. Outra preocupação é que a este governo resta 1 ano e 4 meses de gestão. Se a crise econômica se agravar, terá dificuldades de chegar ao fim de seu mandato.

No caso de Evo e Arce, por enquanto vemos um racha, mas o MAS é uma força muito poderosa, e poderá se renovar, existem nomes novos, como os de Andrónico Rodríguez [presidente do Senado]. A ver se estão dispostos a passar o bastão a uma geração mais jovem.

E sempre há a interrogação de que tipo de artimanha pode ainda usar Evo para tentar um quarto mandato totalmente irregular.

O sr. será candidato?
É ainda cedo, há conversas. Uma determinação forte neste momento é de que a oposição tenha um candidato único para vencer o MAS. O modelo do MAS para o país se esgotou. Não se deseja que termine ou desapareça como partido, pois é uma força política importante na Bolívia, mas a fórmula que usaram já não serve mais ao país.


RAIO-X | Carlos Mesa, 70

Presidente da Bolívia entre 2003 e 2005 e candidato derrotado nas eleições de 2019 e 2020 (primeiro por Evo e depois por Arce), foi jornalista e documentarista. Estudou literatura na Universidade Mayor de San Andrés e é membro da Sociedade Boliviana de História. Autor de diversos livros, entre eles "Cinema Boliviano, do Realizador ao Crítico", publicado em 1979.

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