Descrição de chapéu
Teté Ribeiro

Sobre caldos e outros mistérios culinários

Tento disfarçar minha absoluta ignorância na cozinha, mas sei que a qualquer momento essa verdade pode vir à tona

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Teté Ribeiro
Teté Ribeiro

Jornalista, autora de "Minhas Duas Meninas", "Divas Abandonadas" e de dois guias de Nova York. Foi apresentadora do programa “Saia Justa” e editora da revista Serafina.

São Paulo

Eu não sei cozinhar. E tenho medo de que minhas filhas descubram. Já fiz um curso para iniciantes, em uma escola bem avaliada no bairro em que moro, mas não deu certo.

Além de não ter talento nem muito prazer no preparo de uma comida, não tenho vocabulário para seguir receita. Pois é, triste.

Mesmo no curso que eu fiz, para iniciantes, repito, ninguém parou para ensinar como se doura um alho, frase inicial de muitas e muitas receitas que já li na vida. Ou refogar uma cebola. E, sem saber o primeiro passo, fica difícil seguir em frente. Adoraria ser capaz de alimentar essas duas criaturinhas que eu trouxe à vida, tenho a sensação de que nossa família é muito pouco sustentável sem isso, além de totalmente anacrônica.

Panela com legumes aromáticos
Panela com legumes aromáticos - Keiny Andrade/Folhapress

Por enquanto, tenho conseguido disfarçar minha absoluta ignorância culinária. Mas eu sei que a qualquer momento essa verdade pode vir à tona. Morro de medo desse dia.

É o contrário do que fez a minha mãe, que cozinhava maravilhosamente —e, durante um grande período, diariamente, quando decidiu experimentar viver sem empregada em casa, mas com almocinho fresco e caseiro, além de diverso, todos os dias. Mas não ensinou as duas filhas a cozinharem.

Minha mãe era de uma geração que achava que virar dona de casa era o pior que poderia acontecer na vida de uma mulher. Ela mesma nunca admitiu que isso tinha acontecido com ela. Dona Cecilia, formada em letras clássicas, acabou virando jornalista, e, por circunstâncias além do seu controle, foi obrigada a renunciar à carreira para cuidar da gente. Eu, minha irmã e meu pai.

Minha avó, mineira de Guaxupé, morava na casa da irmã dela, minha tia-avó, ambas viúvas, no prédio da frente do nosso, na Aclimação. A cunhada da minha tia-avó também vivia no apartamento. Eram três velhotas adoráveis, vó Alcina, vó Nonai e vó Dadai. Dessas que fazem licor de jabuticaba e perguntas inapropriadas para os namorados que as netas ousavam levar lá.

A vó Alcina passava as tardes na nossa casa, e, junto da minha mãe, fazia a "quitanda", como se chamam em Minas bolos, biscoitos de polvilho etc. Coisas comestíveis e que caem muito bem com o café da tarde.

Tinha uma tal de "fatia de amendoim" que minha avó preparava de vez em quando e levava dois dias para ficar pronta, entre descascar e torrar o amendoim e preparar o doce na tarde seguinte, com chocolate e outros ingredientes que não sei dizer. Quando isso acontecia, faltava formar fila de gente para comer as pedrinhas açucaradas, crocantes por fora e macias por dentro.

Ou seja, nunca preparei uma refeição, mas almocei e jantei comida caseira quase todos os dias da vida. Não sei dourar um alho, mas sei que alhos são dourados. Não refogo cebola, mas sei que o destino de muitas é ser refogada, o que quer que isso signifique. Agora, o caldo eu realmente não conhecia. O caldo surgiu recentemente na minha vida.

Na última aula desse curso para iniciantes, a professora decidiu ensinar a fazer caldos. Até ali não tinha caldo na história.

Era um curso de oito aulas, e na oitava eu já tinha entendido que não tinha base nem para me considerar iniciante. A última coisa que ia tentar fazer depois daquele massacre culinário seria botar uma carcaça crua de galinha, junto dos pés e um bando de legumes, numa água e ferver por horas e horas. Para quê? Tirei o caldo da lista de coisas que eu teria que aprender a fazer um dia e, se pudesse nunca mais ouvir esse assunto, melhor.

Mas eis que começamos a passar os Réveillons com uma turma de amigos que tinha um certo sujeito, meu amigo querido até hoje, que cozinhava muito. E era louco por caldos. No Réveillon mesmo, dia 31, ele costumava fazer um grande gesto, tipo cozinhar um leitão no fogo baixo por oito horas.

Ficava incrível, me diziam, desmanchava na boca (e agora talvez seja o momento perfeito para dizer que tenho um pouco de nojo dessa descrição, de uma carne que desmancha na boca). Aí, chegava meia-noite, todo mundo brindava o Ano-Novo, botava as crianças na cama e alguém escolhia uma trilha sonora, que a gente cantava gritando e dançando até o último cair morto no sofá.

O meu amigo cozinheiro, que, além de ser uma companhia adorável, tem uma disposição física de atleta, porque corre quase todos os dias há muitos anos, era sempre dos últimos a deixar a festa. E, muitas vezes, na madrugada, imbuído de afeto pelos amigos com quem passava os finais de ano, decidia que o melhor destino para o focinho, os pés e nem sei mais o que do porco servido como prato principal na ceia era virar um caldo.

Então, ele pegava a maior panela da casa alugada pela turma, enchia de água e botava de um tudo lá, junto dos pedaços não assados do leitão. Aí fervia por horas a fio, numa cerimônia tanto apolínea quanto dionisíaca.

Na manhã seguinte, 1º de janeiro, veja bem, eu acordava e, antes de pronunciar uma palavra, ia em direção à geladeira em busca de um líquido refrescante, de preferência gasoso, para lavar a goela e a alma, ambas castigadas pela noite anterior.

E a cena se repetia: em vez de uma inofensiva Coca Zero, dava de cara com um líquido escuro e grosso guardado em uma garrafa pet sem rótulo, às vezes duas, que me lembravam que, em poucos dias, provavelmente, começariam a cair as tempestades de verão que ano após ano carregam sacos
de lixo pelas ruas das cidades, quando não coisas muito mais graves e pesadas, numa água suja bem parecida com aquela da geladeira. Era o caldo.

Meu amigo, dos poucos com quem já convivi que acorda mais tarde que eu nas férias, levantava-se da cama diferente de mim. Orgulhoso do caldo, já planejava fazer um risoto para a turma na primeira noite do ano. Não sei se começava por dourar o alho ou refogar a cebola, nunca tive coragem de perguntar. Mas ficava delicioso.

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