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Abel Reis: Mentiras sobre as fake news

Não é verdade que todas as propostas para combatê-las são bem-vindas

Verdade: nunca produzimos e consumimos tanta fake news. Mentira: todas as propostas para combatê-las são bem-vindas. Verdade: suas causas e efeitos estão sendo discutidos e analisados exaustivamente. Mentira: com tanto debate e reflexão, compreendemos cada vez melhor esse fenômeno.

Certeza absoluta: as fronteiras que definem fake news são tão nebulosas quanto elas próprias. Na dúvida, faça como Descartes (1596-1650), o filósofo cujo método era duvidar de tudo o que os sentidos lhe traziam. Sendo assim, desconfie do muito fácil, da ausência de contrapontos e da falta de serenidade —dessa forma, poderá evitar conclusões ou soluções apressadas.

Fake news não é uma “evolução” da fofoca. As candinhas de antigamente (de carne e osso ou de revistas especializadas) podiam causar sofrimento e até estragos a uma reputação. Mas a mensagem circulava em ambiente restrito, com impactos, idem.

Hoje, elege-se um presidente à base de informações distorcidas. Uma fofoqueira não tinha o poder: 1) das redes sociais, com sua velocidade e alcance ilimitados; 2) da tecnologia acessível a qualquer usuário de smartphone, para manipular e distribuir imagens e áudios maciçamente e 3) de guardar e disponibilizar um conteúdo eternamente, à revelia dos envolvidos nele.​

 

Fake news também não se confunde com discurso de ódio ou política. Diariamente, celebridades da TV, música e esporte são falsamente declaradas mortas ou doentes. Mas nem precisa ser famoso para tanto.

Marcelo Aparecido (juiz que apitou a vitória do Corinthians sobre o Palmeiras na final do Campeonato Paulista) foi acusado de ter um bar frequentado por jogadores e dirigentes corintianos. O boato viralizou, seu endereço caiu na rede, ele sofreu ameaças e até contratou segurança particular. De concreto, há uma foto do seu bar com torcedores de vários times e um histórico profissional bem-sucedido na arbitragem.
 

Ainda: fake news não se resolve com censura. É perigosa a ideia de investigar veículos suspeitos, lançada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O que significa investigar e o que vem depois da investigação? O que são veículos: tanto jornais e revistas tradicionais quanto blogs e perfis no Facebook e Twitter? Que critérios definem suspeição em ano de eleições em um país profundamente polarizado? Conteúdos fanfarrões, que brincam com a realidade e induzem a erros de interpretação, escaparão dessa peneira?

Fechar um site que comprovadamente age de má-fé é o mesmo que mirar o traficante da esquina para acabar com o tráfico de drogas. Em breve, mais dez estarão em ação. Fake news se combatem estimulando postura e leitura crítica e consciente perante a realidade.

No Reino Unido, a BBC realiza uma ampla campanha nas escolas, utilizando um game que simula uma redação. No jogo, os estudantes atuam como jornalistas e são instigados a questionar, checar e compreender em profundidade diferentes temas.

O bom jornalismo, vale lembrar, é arma poderosa contra a desinformação. A natureza de um veículo de comunicação (que depende de credibilidade), a estrutura de uma redação (com vários departamentos e funções), a regra do contraponto (sempre ouvir várias fontes), a sistemática de autocrítica (erros de apuração ou conclusão devem ser abertamente compartilhados com os leitores, pelo próprio veículo que os cometeu) e o timing da equipe (maior do que o de um blogueiro que trabalha sozinho) favorecem a construção de histórias sólidas.

A verdade (ou o mais próximo que se pode chegar dela) tem um período de cura. Fato: nesses novos tempos, produtores e consumidores de conteúdo ávidos pelo próximo furo ou viral correm riscos. De queimar e de serem queimados.

Abel Reis

Presidente da operação brasileira da Dentsu Aegis Network (DAN), terceiro maior grupo global de comunicação e mídia

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