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Rui Tavares

É mais do que o Brasil que está em jogo

Eleições no país podem conter onda global de fascismo

Praça dos Três Poderes, em Brasília, vista a partir do Palácio do Planalto - Pedro Ladeira - 11.mai.16/Folhapress

Houve um tempo em que as eleições tinham consequências menos drásticas do que hoje. Uma vitória ou uma derrota poderia significar uma mudança de políticas e de políticos, mas não o fim de um regime democrático. Houve um tempo em que, mesmo que uma eleição tivesse consequências drásticas, estas quase sempre se circunscreveriam ao país em causa.

Já não estamos nesse tempo.

Hoje as eleições não significam apenas a escolha entre uma alternativa mais de esquerda ou mais de direita dentro de um quadro democrático, mas cada vez mais a possibilidade de eleger quem, em nome da democracia, se apreste a destruir o Estado democrático de Direito.

E hoje o nosso mundo é de tal forma integrado e interdependente que o fim do Estado democrático de Direito num país rebaixa o limiar de normalidade para todos os outros países. Aquilo que era antes inimaginável —separar pais imigrantes dos seus filhos nos EUA, fechamento de jornais e universidades na Hungria, prisão de prefeitos que integram refugiados nos seus municípios na Itália— passa a ser possível, primeiro, e banal, depois. Anestesiados, passamos à próxima fase, até que o inumano e o inominável regressem à face da Terra, como aconteceu e voltou a acontecer no século 20.

E é nesse preciso meio da encruzilhada que o Brasil vai às urnas no próximo dia 7 de outubro e, se se evitar por agora o pior, também no próximo dia 28 de outubro. A presença do apologista da ditadura e da violação de direitos humanos Jair Bolsonaro no topo das pesquisas, com possibilidade real de vitória no primeiro ou segundo turno, deixa a democracia brasileira sob um perigo muito maior do que muitos imaginam. Mas não é só o Brasil que está em jogo nestas eleições.

Escrevo como estrangeiro amigo do Brasil, historiador e ex-parlamentar europeu para apresentar o seguinte argumento: as eleições brasileiras serão também decisivas para o resto do mundo, não só pela importância intrínseca que o Brasil tem pela sua escala e posição geográfica, mas também porque quis o destino que, depois de dois anos de uma vaga de nacional-populismo no mundo, caiba ao Brasil ser a muralha que detém a progressão fascista ou o dique que ruiu perante a enxurrada.

Comecemos pelo primeiro ponto: desenganem-se aqueles que acharem que o risco apresentado por Jair Bolsonaro não é elevado. Ao contrário do que se acreditava havia umas décadas, as democracias ocidentais podem acabar ou ficar reduzidas a uma situação de fachada. Para acabar com uma democracia, basta um chefe de Estado ou de Executivo que não acredite nela e que de forma persistente queira concentrar o seu poder.

Quando Viktor Orbán subiu ao poder na Hungria, em 2010, muitos húngaros acreditavam que ele não seria capaz de fazer o que dizia —por incompetência, incapacidade própria ou inverosimilhança do seu programa. Logo nos primeiros meses foi alterada a lei de imprensa sob pretexto de que não havia pluralismo nem rigor na mídia húngara.

Mas isso foi só o começo: as leis eleitorais foram alteradas para garantir vitórias com maiorias de mais de dois terços ao partido de Orbán, a Constituição foi alterada mais de vinte vezes e o topo da hierarquia judicial aposentada compulsivamente. A melhor universidade do país vai fechar em breve, os cientistas, acadêmicos e jovens universitários abandonam o país, e a Hungria caiu vários lugares nas listas comparativas internacionais sobre a saúde do Estado de Direito, deixando de ser considerada uma democracia plena.

Quando apresentei o meu relatório sobre a Hungria ao Parlamento Europeu, muita gente acreditava que não poderia ser assim tão grave; este ano o Parlamento Europeu aprovou a medida mais dura dos tratados da União Europeia contra “violações graves e persistentes” dos valores democráticos europeus, sem saber se ainda irá a tempo de salvar a democracia húngara. Aos brasileiros que acham que isto não pode acontecer no Brasil, direi que os húngaros, turcos, filipinos ou estadunidenses achavam o mesmo.

E aqui entra o segundo ponto. Uma vitória de Jair Bolsonaro será não apenas um terrível revés para a democracia na América Latina como dará ainda mais gás à ofensiva fascizante no Ocidente. Por outro lado, se o Brasil conseguir deter Jair Bolsonaro, dará uma mensagem ao mundo de que a vaga fascizante não é inevitável e que é possível defender a democracia.

O adversário democrata de Jair Bolsonaro no segundo turno —de Fernando Haddad a Ciro Gomes, Marina Silva e Geraldo Alckmin, todos são democratas— terá por missão congregar todas as lideranças políticas e a cidadania em torno de um pacto republicano que permita preservar a democracia e repor o Brasil no posto que lhe compete de país decisivo na política mundial.

Não ouso dizer aos brasileiros como hão de votar. Mas permito-me lançar um apelo a todos os candidatos democráticos para que se juntem o mais depressa possível ao candidato adversário de Bolsonaro no segundo turno, fazendo das diferenças unidade, em torno da democracia. Pelo Brasil. E por todos nós.

Rui Tavares

Historiador português, ex-eurodeputado e relator do Parlamento Europeu em questões de direitos fundamentais; cronista do jornal Público

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