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Andrea Gallassi

O novo modelo de internação involuntária para dependentes químicos é adequado? NÃO

Tratamento efetivo requer relação terapêutica de confiança

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Andrea Gallassi Mestre e doutora pela Faculdade de Medicina da USP, com pós-doutorado pela Universidade de Toronto; professora e coordenadora do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da UnB
A professora Andrea Gallassi, especialista em dependência química - Divulgação
Andrea Gallassi

As formas de abordagem de quem faz uso problemático de drogas, fora da esfera criminal ou que usem mecanismos de coerção, como as internações sem o consentimento do usuário, estão sendo substituídas em diversos países por intervenções em saúde amparadas pela ciência e pela garantia de direitos. 

Tais intervenções devem prezar pelo cuidado e pela não estigmatização de quem usa drogas. Além disso, a circulação destas substâncias deve ser regulada pelo Estado, diminuindo o poder das organizações criminosas e de toda a sua cadeia de interferências, se beneficiando dos tributos oriundos deste comércio e investindo tal arrecadação em ações de tratamento e prevenção.

Na história da humanidade, sempre se fez uso de drogas como meio para alterar a consciência e por diferentes razões, sejam elas místicas religiosas, terapêuticas ou como forma de socialização, e a minoria dessas pessoas desenvolve a dependência química em decorrência do uso; ou seja, a maioria usa drogas sem nenhum ou com poucos problemas.

O principal argumento contrário ao uso facilitado da internação involuntária, prevista na recém-aprovada lei 13.840/2019, é o efeito iatrogênico provocado por ela.

A efetividade do tratamento do uso problemático de drogas depende quase que exclusivamente do desejo, da motivação e do empenho do usuário em querer interromper ou diminuir o uso. Cabe aos profissionais de saúde auxiliá-lo a identificar suas dificuldades e a planejar mudanças, sempre em concordância com suas expectativas e possibilidades. 

Este processo, notadamente construído a partir de uma relação terapêutica de confiança e comprometimento de ambas as partes —usuário e profissional—, é conflitante em sua totalidade com medidas que recrudescem o autoritarismo e uma espécie de “polícia sanitária”, que caracterizaram a triste história da saúde mental no Brasil, marcada por ações higienistas a partir de internações de longa permanência, por vezes involuntárias, onde a violação de direitos e a tortura eram práticas recorrentes.

Além disso, tais medidas se tornam um desincentivo aos usuários a procurarem o tratamento, pelo receio de não terem suas vontades respeitadas.

É sabido que os serviços de tratamento no âmbito do SUS alternativos à internação, como são os Caps AD (Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas), ainda são insuficientes e requerem investimentos para sua ampliação e manutenção. 

No entanto, isso não pode ser utilizado como justificativa para o direcionamento de recursos públicos, sem licitação, para contratar vagas de internação em instituições privadas e de orientação religiosa, como são as comunidades terapêuticas, sem que estas se submetam ao cumprimento de normas equivalentes às que são submetidos os serviços que prestam atenção à saúde. Além disso, o tratamento ofertado por estas instituições carece de evidências científicas que sustentem sua eficácia e, consequentemente, o massivo investimento previsto por esta nova lei.

Os desafios relacionados ao cuidado das pessoas que usam drogas no Brasil são tangíveis e conhecidos e, como tal, necessitam do compromisso concreto de gestores públicos para o desenvolvimento de uma política com foco na saúde e na assistência social. Uma verdadeira reforma na política de drogas requer coragem política e liderança —e deve superar a concepção das drogas como um “inimigo social” e sua abordagem passional e pouco pragmática.

Andrea Gallassi

Mestre e doutora pela Faculdade de Medicina da USP, com pós-doutorado pela Universidade de Toronto; professora e coordenadora do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da UnB

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