Em 22 de outubro de 2018, seis dias antes da eleição de Jair Bolsonaro, Luiz Felipe Pondé dedicou sua coluna nesta Folha ao assunto que considerou mais relevante naquela semana: o “fetiche gourmet” de uma declaração do músico Roger Waters, chamando o então candidato do PSL de fascista.
Já na última segunda-feira (17), pouco depois que o site The Intercept confirmou a degradação institucional do morismo/bolsonarismo, o alvo foi o que o colunista achou “essencial” no episódio —a legitimação do “terrorismo digital”, cujo ataque à Lava Jato interessaria a “políticos corruptos”, “intelectuais e artistas orgânicos que perderam a boquinha”, “professores irrelevantes”.
A figura de Pondé é simbólica de uma crise: a de certa direita brasileira que aderiu às guerras culturais importadas dos Estados Unidos a partir dos anos 1990. Ela chegou ao poder e, aparentemente, não sabe o que fazer disso em termos intelectuais. Seu método, que sempre foi o de afirmar valores por meio de ataques a valores opostos —o que podia ter algum charme de oposição sarcástica, vá lá—, há um bom tempo virou mero diversionismo ou combate a espantalhos.
No texto sobre Roger Waters, por exemplo, Pondé implicou com muitas coisas. Entre elas, o fato de o músico não ter “tempo e ferramentas específicas para construir um mínimo repertório para realizar uma cognição política minimamente consistente”. Mas não respondeu a uma pergunta simples: o termo “fascista” (ou "fascistóide", se nossa cognição optar por um preciosismo consistentemente mínimo) estava tão errado assim ao se referir a um candidato pró-tortura e contra minorias?
De modo semelhante, os meses posteriores à vitória do capitão inspiraram colunas sobre temas como a "ânsia de status" da esquerda ("pessoas bacanas” que aderiram à “moda brega dos vinhos”) e a divisão dos gêneros em banheiros ("o extermínio dos meninos heterossexuais na origem é a nova meta”).
Quanto a um presidente em guerra aberta com a educação, a ciência, o meio ambiente, a saúde, a cultura, os direitos humanos e o senso de ridículo, tudo levado adiante por sua equipe de idiotas convictos e oportunistas, a crítica que o articulista conseguiu fazer —das poucas, e salvo engano a mais severa— foi a de ele ser um “burro” que governa “como se estivesse num churrasco”.
É curioso como filósofos morais da moralidade alheia não percebem o quanto pode haver de projeção psicanalítica nesses juízos. Para Pondé, adversários ideológicos jamais agem por convicção. Tudo neles é jogo para a torcida, carreirismo, covardia.
Alguém que escreve o mesmo texto toda segunda-feira, por sua vez, não pensa também em agradar à plateia que formou? Não tem benefícios (espaço, convites para palestras, o pacote todo) por emprestar sua erudição à inflexibilidade dessas três ou quatro ideias básicas?
Como a direita econômica, que faz isso mirando supostos benefícios da agenda de Paulo Guedes, a classe cultural de Pondé chafurda no endosso aberto ou envergonhado à barbárie. Bolsonaro é mais que o tio burro do churrasco. Os valores que ele representa têm história, são bastante concretos e perigosos. É uma escolha moral dar atenção a eles ou preferir brigar contra alvos inofensivos.
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