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Sheila Leirner

Arte em perigo, a lição de Bacon

Exposição do artista em Paris é recado aos brasileiros

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Sheila Leirner

Quando pensamos conhecer um artista, ele pode ser reavaliado e descobrimos que nos enganamos. Este é o dever de exposições críticas como as que o Centro Pompidou pratica há algum tempo em Paris. Graças a elas, somos apresentados a outros Magritte, Mondrian, Duchamp e, agora, a um novo e surpreendente Francis Bacon (1909-1992). Que, além do mais, dá a lição certa a nós brasileiros, há meses descobrindo, ao contrário, que não nos enganamos e que a nossa educação e cultura de fato estão ameaçadas por um sistema insidioso, alimentado por ideologias características do neofascismo de extrema-direita.

Por meio de 50 pinturas intimamente relacionadas a 6 obras poéticas, literárias, filosóficas e teatrais, percebemos como a cultura e o conhecimento —bens desde sempre odiados pelos fascistas— puderam abrir as portas do imaginário de Francis Bacon, estimulando a criação de imagens. A retrospectiva “Bacon com todas as letras” (até 20 de janeiro de 2020) revela o impacto que Ésquilo, Nietzsche, Joseph Conrad, Georges Bataille, Michel Leiris e T.S. Eliot (nenhum “comunista”, que se saiba), extraídos da biblioteca de mais de mil livros do artista, tiveram sobre as duas últimas décadas de sua vida. A escolha do período também é inédita. Bacon, um dos artistas mais célebres do século 20, sempre foi considerado mais criativo no início. Engano. Envelhecendo, ele se torna apurado, livre, extremo. Toma mais riscos.

Dado que o pintor é visto sob o ângulo inusitado de sua erudição e curiosidade, entramos no olho de um furacão perturbador, insolente, violento, cruel e totalmente imprevisível. Em nossa volta reina o caos, e agradecemos ao artista por isso. Nada vale mais do que a consciência. Tudo que houve de pior no século passado se concentra na sua obra. Bacon pinta com as tripas e o seu corpo dilacerado, antecipando até mesmo a própria morte.

Esta obra quase que inteiramente sexual, erótica e homossexual passa pela autobiografia, pelo conhecimento artístico (mesmo Duchamp está presente em alguns trabalhos) e, sobretudo, por sua época. A criação dele não pode ser compreendida num vácuo e, como toda arte, é incensurável. A arte, a história da arte e os próprios artistas são pouco dissociáveis da literatura, das ideias e dos eventos políticos contemporâneos. Só talento não teria bastado. Bacon não seria Bacon sem a cultura.

Francis Bacon: Tríptico de 1986-1987 (Estate of Francis Bacon/ADAGP, Paris and DACS, London 2019/Prudence Cuming Associates Ltd)
Tríptico do artista anglo-irlandês Francis Bacon (1909-1992) - Francis Bacon

Mas a pintura do mestre tem ligação também com a história, que os neofascistas negam ou reescrevem. Em um de seus trípticos (1986-1987), a Europa no século 20 pode se resumir às guerras que quase a destruíram, às oposições ideológicas que durante tanto tempo a dividiram.

A primeira imagem mostra o presidente americano Woodrow Wilson descendo a escada do Quai d’Orsay, em 1919, onde tinha colocado ponto final na Alemanha vencida. A terceira, crítica, tem relação com o assassinato de Trotsky, em 1940. E, entre as duas, John Edward, amante do pintor, é a imagem do sentimento, da inocência e do prazer, que vacila —não em um degrau como os políticos, mas em pedestal precário—, como para nos avisar que a nossa arte também está em perigo.

Sheila Leirner

Crítica de arte, jornalista, escritora e curadora geral das 18ª e 19ª Bienais de São Paulo

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