Descrição de chapéu

Guinada e colisão

Política externa ideológica só não gera mais danos devido a resistências de fora

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O deputado Eduardo Bolsonaro (esq.) e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo - Arthur Max - 12.jul.19/MRE

“Libertaremos o Brasil e o Itamaraty das relações internacionais com viés ideológico a que foram submetidos nos últimos anos.”

A sentença foi lida por Jair Bolsonaro em seu primeiro pronunciamento formal após ser eleito presidente, no dia 28 de outubro de 2018. Pouco mais de um ano depois, o Itamaraty está mais do que nunca atado a visões ideológicas.

A ruptura com o antiamericanismo mais pueril dos anos petistas começara já na gestão de Dilma Rousseff e se acentuara sob Michel Temer (MDB). Bolsonaro exacerbou o processo —jogando fora tanto esquerdismos quanto uma desejável isonomia diplomática.

À primeira vista, as sandices antiglobalistas da trupe que assumiu as relações exteriores, formada por discípulos do escritor Olavo de Carvalho, poderiam parecer mera retórica, sem impacto concreto.

Entretanto foi do órgão comandado por dentro pelo chanceler Ernesto Araújo e por fora pelo deputado e filho 03 Eduardo Bolsonaro, com palpites do assessor Filipe Martins, que partiram algumas das crises mais palpáveis do ano.

O presidente expressou seu desejo de alinhar-se tão automaticamente quanto possível às políticas do americano Donald Trump, seu modelo declarado de governante.

Disso saiu um sem-número de concessões e frustrações: a vaga que não veio na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a isenção unilateral de visto de entrada para cidadãos dos EUA, a permanência do veto americano à carne brasileira, o apoio ao embargo a Cuba.

A fechar o ano, a ameaça —não cumprida, ao menos até aqui— de taxação das compras de aço e alumínio do país por Trump.

Até a estabanada —e frustrada— tentativa de elevar o neófito Eduardo Bolsonaro à condição de embaixador em Washington foi calcada numa suposta proximidade pessoal das famílias presidenciais.

Por óbvio, convém manter boas relações com a maior potência econômica e militar do mundo. Daí à genuflexão há distância, contudo.

Na América Latina, Brasília afastou-se do papel de líder natural. Depois de intrometer-se na eleição presidencial argentina, Bolsonaro antagonizou-se com o maior parceiro local porque saiu vitoriosa uma candidatura à esquerda.

Quanto à arruinada Venezuela, a influência americana quase gerou um desastre no começo do ano, quando o governo flertou com a ideia de intervenção contra a ditadura de Nicolás Maduro. O despautério acabou devidamente abortado pela cúpula militar.

De modo semelhante, a pasta da Agricultura conseguiu impedir que fosse levada a cabo outra intenção desastrosa —a prometida mudança da embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém.

A medida agradaria ao aliado Binyamin Netanyahu e a Trump, mas sobretudo o eleitorado evangélico que encara a consolidação do Estado judeu como um preâmbulo para a volta de Cristo.

O custo de tais benefícios nebulosos seria a indisposição com os países árabes, que veem Jerusalém como capital da Palestina —e são compradores de fatia expressiva de proteína animal brasileira.

O caso, de todo modo, permanece inconcluso. Na abertura do escritório comercial brasileiro na cidade, poucos dias atrás, reiterou-se o intento de mudar a embaixada.

Mesmo o único sucesso incontestável da presente gestão no setor externo —a assinatura em junho do acordo Mercosul-União Europeia— encontra-se sob risco, em particular devido à péssima imagem da política ambiental.

O acerto ainda precisa da ratificação de todos os países envolvidos, e poucos temas são tão sensíveis na Europa quanto a crise climática. Bolsonaro, ademais, expôs-se a esnobar a embaixador francês e insultar a mulher do presidente Emmanuel Macron enquanto ardia a crise dos incêndios da Amazônia.

Também nesse caso, atores mais racionais da área econômica e até do Legislativo intervieram para tentar reconstruir pontes.

Ao menos em relação à China, a vocação errática da política externa proporcionou avanços. Das diatribes de campanha eleitoral, quando o hoje presidente dizia que a ditadura comunista estava “comprando o Brasil”, evoluiu-se para a aposta em alianças comerciais com o gigante asiático.

No giro internacional de outubro, que incluiu China, Japão e nações do Golfo Pérsico, o pragmatismo se impôs, e o país tem se beneficiado da constante presença chinesa em leilões de infraestrutura.

Trata-se de algum alento. Se temos de conviver com o besteirol ideológico dos condutores da área externa, que a interposição da realidade pelas circunstâncias e por agentes externos possa evitar erros maiores e abrir oportunidades.

editoriais@grupofolha.com.br

Erramos: o texto foi alterado

Em versão anterior, foi escrito "contém" em vez de "convém" na frase "Por óbvio, convém manter boas relações com a maior potência econômica e militar do mundo". O texto foi corrigido.

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