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Frei Betto

Semana Santa muito santa

Cuidar de um doente vale mais que as celebrações

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O papa Francisco cancelou as liturgias presenciais na Semana Santa para evitar aglomerações e não expor os fiéis ao risco de infecção.

Minha tia está desolada. Logo ela que, em Minas, jamais perdeu as procissões e a missa do domingo de Páscoa. Tentei convencê-la de que neste ano teremos uma Semana Santa muito mais santa. No Domingo de Ramos, ao comemorar a entrada de Jesus em Jerusalém, não podemos esquecer que ele está presente nas filas formadas por milhões de pessoas que, em todo o mundo, buscam remédios nas farmácias e atendimento nos postos de saúde.

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O escritor Frei Betto em jantar em São Paulo - Marcus Leoni - 31.ago.17/Folhapress

Jesus também está presente entre enfermeiros e médicos, bombeiros e policiais, que arriscam a vida para salvar pacientes infectados, gesto semelhante ao que Ele teve ao lavar os pés de seus discípulos, rito relembrado na Quinta-Feira Santa.

Jesus se encontra nos hospitais superlotados, e ali experimenta a mesma agonia que Ele viveu no Horto das Oliveiras ao de se deparar com o risco real de morte.

Deixado a sós pelos discípulos, e abandonado até pelo próprio Deus, Jesus agora se multiplica por bilhões de pessoas isoladas em suas casas e impedidas de abraçar seus entes queridos.
Jesus preso e torturado é também aquele que vive no abandono das ruas, sem meios para se isolar, acesso ao sistema de saúde e condições higiênicas de se proteger para escapar da ameaça de morte iminente.

Jesus ressuscita no agricultor que cultiva o que chega às nossas mesas, no caminhoneiro que transporta medicamentos e alimentos, no comerciante que nos assegura bens essenciais.

Jesus se manifesta nos pequenos gestos de solidariedade, como a jovem do apartamento 404, que, todos os dias, prepara as refeições para a idosa do 302, já que a cozinheira está afastada. Ou o empresário que fornece diariamente quentinhas a moradores de rua que circulam por sua vizinhança. Ou o universitário que se apresentou como voluntário num hospital para carregar macas e limpar enfermos.

Temos ideia equivocada da presença de Deus entre nós. Em geral, dissociamos Deus da realidade cotidiana. Ele está lá no Céu, invisível aos olhos, só alcançável pela fé. Seu silêncio diante da pandemia causa indignação em muitos.

Este é um dos temas em “A peste”, romance de Albert Camus. Ali, o silêncio de Deus impele à santidade sem Deus. Camus reflete essa concepção equivocada de um deus que paira acima da humanidade.
Ora, somos todos, homens e mulheres, imagem e semelhança de Deus. Porém, sem olhos para reconhecê-Lo no próximo.

“Deus é mais íntimo a nós do que nós a nós mesmos”, disse Santo Agostinho. O próprio Jesus, indagado de como haveremos de conhecer Deus após esta vida, deu resposta surpreendente: “Deus já pode e deve ser visto aqui e agora. Basta abrir os olhos e o coração para reconhecê-Lo naquele que tem fome, sede, está doente, desamparado ou oprimido“ (Mateus 25, 31-40).

Todas as vezes que servimos aos que sofrem é ao próprio Deus que servimos, ainda que não tenhamos fé. Esta é a essência do cristianismo. Cuidar de um doente vale mais aos olhos de Deus do que todas pomposas celebrações litúrgicas, presididas pelo papa na basílica de São Pedro, em Roma.
Porque, para Deus, o que há de mais sagrado é o ser humano.

Frei Betto

Escritor e assessor de movimentos populares, é autor de “Por uma Educação Crítica e Participativa” (ed. Rocco)

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