A pandemia de Covid-19 veio alterar o modo que vivemos em sociedade, cujas ressonâncias serão mais drasticamente sentidas nas camadas menos privilegiadas. Os impactos sanitário e econômico, que já se fazem sentir, escancaram inúmeras diferenças muitas vezes ignoradas ou camufladas.
Por isso, as transformações em curso são mais abrangentes e devem modificar em grande medida o que nos caracteriza como seres humanos e sociais, envolvendo a esfera cultural e os processos de subjetivação, os modos de criação, a crença na racionalidade, os hábitos e valores compartilhados. Esses câmbios se farão sentir com mais intensidade após o retorno mínimo do convívio social, mas indicam desde já uma nova agenda de pesquisas.
É nesse sentido que as ciências humanas, um dos principais alvos de ataques no Brasil por parte de segmentos conservadores e de seus representantes políticos, revelam-se necessárias. No entanto, na atual gestão do governo federal, agências financiadoras como a Capes e o CNPq sofreram cortes orçamentários significativos, alinhados a uma vertente ideológica que menospreza as humanidades e as artes.
Na mesma linha, a Secretaria Especial da Cultura encontra-se esvaziada de suas funções, sem oferecer a artistas e técnicos da área qualquer apoio significativo para enfrentarem os problemas decorrentes da pandemia. Mais ainda, a direção de órgãos centrais como o Iphan e a Ancine foram entregues a dirigentes despreparados.
Alguns dos problemas expostos pela pandemia já haviam sido, há muito, detectados por pensadores centrais das ciências humanas. Lembramos o filósofo alemão Walter Benjamin, que alertou para o empobrecimento da experiência na modernidade. Ainda que expostos a um excesso de informações, temos dificuldade para transformá-las em algo mais significativo, em partilhar conhecimento e transmiti-lo.
Nos anos 1930, Benjamin declarou que a tradição dos oprimidos nos mostra que o estado de exceção em que vivemos é de fato a regra geral. Nesse sentido, o “novo normal” alardeado nesses tempos de Covid-19 não deve nos iludir. A opressão social aumenta na mesma medida em que a pobreza se dissemina entre toda a população.
Também é uma pobreza de espírito, cuja possibilidade de enfrentamento e superação encontra caminho na cultura. Não de uma cultura entendida como inventário de bens reificados, fetichizados ou intemporais —como querem aqueles que olham para o passado em busca de uma verdade eterna presente nos autores clássicos e transponível sem mais para o presente—, mas, sim, de uma cultura, e de um significado de bens culturais, que irrompe na atualidade como um ato de potência e uma relação viva de transformação.
É assim que artistas e movimentos culturais, neste momento de pandemia, já sinalizam com reflexões ou produções que ultrapassam os temas do isolamento e da crise. É possível dizer que aparecem nelas uma interrupção do tempo –uma autocompreensão do presente que bem poderia ser outro, mais justo e equânime. Elas mostram um sentido de oportunidade, uma brecha ou fenda que faz as energias atuais convergirem em direção à mudança.
Por parte das ciências humanas, redobram-se nossos esforços para se obter diagnósticos precisos da realidade em sinalização ao enfrentamento que temos adiante. As pesquisas sociais são indispensáveis e estão sendo feitas não só em ambiente universitário. Neste momento, em que os afetos se confundem com os fatos, caracterizando o que alguns chamam de “pós-verdade”, da qual as fake news são mentiras apresentadas como verdades científicas, é urgente que o pensamento crítico se espalhe cada vez mais.
Em consonância com outras áreas do conhecimento, as ciências humanas tornam-se imprescindíveis no combate à pandemia e seus efeitos desastrosos. Talvez não se deva esperar “a soma de todos os males”, que, de muitas maneiras, já é o que existe agora, para que se gere a união possível entre as forças democráticas de maneira a suplantar esse estado de coisas desesperador, porque o pior continua por vir.
Como bem disse o sociólogo francês Pierre Bourdieu, o mundo social esconde as revelações mais inesperadas sobre o que menos queremos saber acerca do que somos. E podemos, sim, ser melhores.
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