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Isabel Amorim Sicherle

Levem a sério

O dia de um infectado parece um jogo: você avança uma casa, mas volta duas

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Isabel Amorim Sicherle

Sou relativamente jovem. No mundo em que as pessoas podem chegar aos 100 anos, ter 50 ainda é pouco. Considero-me uma pessoa saudável. Bebo pouco, me alimento bem, sou maratonista. Já fiz dezenas de corridas pelo mundo, das mais comuns às mais malucas, como cruzar os Andes correndo em três dias.

Quando a Covid-19 começou, tomei todos os cuidados, não só comigo e minha família, mas também na empresa que dirijo, o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição). Desde 18 de março estamos todos de quarentena. Como vivo entre o Rio e São Paulo, fiz poucas viagens de carro e saía de casa para correr e eventualmente ir ao supermercado —de fato, sem máscara; este deve ter sido o meu erro. Peguei a doença e, junto, uma bactéria que me afetou os rins, uma pielonefrite. Segundo os médicos, um raio caiu duas vezes na minha cabeça (mistérios da Covid-19).

A presidente do Ecad, Isabel Amorim Sicherle - Juca Varella - 22.nov.11/Folhapress

Cheguei ao hospital com um quadro infeccioso bastante grave e demorei para melhorar. Não tive problemas respiratórios, mas me senti muito mal. Em um momento, tive medo de morrer. É impossível esquecer a coragem das pessoas que cuidaram de mim, são heróis mesmo. Enfermeiros e médicos de uma doçura que nunca poderia imaginar. Cada paciente que saía do hospital era aplaudido pela equipe. Comovente, um momento de esperança.

Uma amiga me perguntou o que eu fazia no hospital, e me surpreendi com a minha resposta: Nada, passo mal o dia todo. Sentia-me sozinha, chorei diversas vezes. Não imaginei que um corpo pudesse sentir tanta fraqueza. O dia parecia um jogo no qual você avança uma casa, mas volta duas.

Comemorei o dia em que sentei na poltrona, mas logo voltei para a cama com uma dor de cabeça impossível. Tomar banho era um feito, um esforço tremendo, uma maratona de 100 km.

Impossível não sair de uma situação dessas com medo e com uma grande necessidade de dizer para todos que tomem cuidado, com uma certa raiva das pessoas que não levam a sério. A doença é muito grave, e relaxar agora é colocar o outro em perigo —principalmente quem não tem acesso a um hospital particular. Nunca passamos por dificuldade tão grande e não consigo achar normal a praça ao lado de casa repleta de crianças ou o calçadão de Ipanema cheio no final de semana.

Não minimizo as questões econômicas de uma quarentena. Tenho muitos amigos fechando seus negócios e com dificuldades financeiras, assim como a população que está perdendo emprego e renda no distanciamento social. É triste demais.

Como gestora de uma empresa, tomo decisões difíceis diariamente. Trabalho com direito autoral, e nossa arrecadação caiu 50% em abril, o que representa uma queda vertiginosa na renda de milhares de compositores. Não sabemos quando o mercado vai retomar. Mas temos que preservar a vida de nossos funcionários. A saúde de todos é a nossa prioridade.

Haverá, claro, o momento da retomada. Quando tudo isso acabar, as pessoas estarão ávidas por ver seus amigos, ouvir música, sentar na calçada e tomar um chope. Vamos valorizar as coisas simples da vida como nunca. Mas, neste momento, é muito importante seguir em casa. Sim, é difícil, é chato, mas com certeza existe muita alegria em estar vivo, com a sua família, na sua casa. Ficar em casa é um ato de amor ao próximo, de compreensão, de entendimento da desigualdade de nosso país que está literalmente nos custando vidas.

A desigualdade, aliás, é como um tapa diário na nossa cara quando vemos o numero de mortos nos alertando o quanto é errado ir às ruas. Podemos lembrar deste momento como aquele em que também fomos heróis, como foram todos que arriscam suas vidas para salvar outras. Se formos firmes e ficarmos em casa.

Isabel Amorim Sicherle

Superintendente do Ecad​ (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição)

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